Agosto é mês de Pachamama, a Mãe Terra, para nossos vizinhos de América, do Peru, da Bolívia, do Equador e das regiões selvagens do noroeste da Argentina.
Nada a ver conosco? Não sei... quando nossos olhos se voltam para a porção Sul da América, sempre tenho a impressão de que vamos ficando meio míopes, e só enxergamos aquela linha imaginária do Tratado de Tordesilhas, lembram dele? Aquele que portugueses e espanhóis usaram para delimitar suas posses no “Novo Mundo”... e que, como sempre acontece com estas “linhas imaginárias” que os políticos usam para dividir o planeta, ignorou as matas, os cerrados, os animais, as histórias e as águas que compartilhamos...ficaram os cumes das montanhas, a distância... horizonte, para nós, é o mar e as terras, mais além do mar...
Não faz mal, sempre é tempo de olhar para o umbigo da América. E se você resolver olhar nesta direção, vai descobrir que temos, sim, uma infinidade de coisas a ver com nossos vizinhos do outro lado da mata, do outro lado das grandes montanhas dos Andes...
Pachamama, por exemplo. Agosto para mim era cercado por uma aura de desconforto. Mês de desgosto, diziam os antigos. Mês de mau-agouro. Isso durou até eu descobrir que agosto é mês de Pachamama, a Mãe Terra dos povos incas e quechuas. “Pacha”, em quechua é universo, mundo, é o tempo e o espaço onde se desenrola a vida. “Mama”, é mãe. Pachamama é a divindade que gera todas as coisas, os seres, a mata, as sementes... tudo existe primeiro no seu útero. A terra é seu corpo e tudo que está sobre ela é manifestação, é presença divina. Pedras, rochas, grutas, são tesouros escondidos, jóias preciosas deixadas aqui e ali pela deusa para sinalizar lugares sagrados. Neles, a Mãe Terra se abre e se expõe.
Dizem também que, no início, quando os seres viviam próximos aos deuses, as festas que celebravam os tempos do plantio e das colheitas eram momentos únicos, especiais. Porque durante estes tempos sagrados, a Mãe Terra se abria, pronta para ser fertilizada pelos espíritos do céu. A tarefa das gentes era ajudar os deuses a se unirem, com oferendas, presentes e sacrifícios. E assistir, em cada ato da vida, à representação do casamento divino.
Com o tempo, a Mãe Terra foi assumindo o rosto de outras “mães”. Contam, por exemplo, que ela está por trás da devoção à Virgen de Salta y Jujuy, na Argentina, a quem os fiéis oferecem ainda hoje comida e vinho. Mas não é só ali que o ritual se repete, sempre em agosto. Peruanos e bolivianos também compartilham o costume da “challa”. A palavra quer dizer verter, derramar, regar. Incorpora a idéia primordial de “reciprocidade” dos seres humanos em relação aos deuses. Afinal, é preciso agradecer a Pachamama pelas bênçãos da Terra, pela vida renovada a cada ano. E o ritual consiste em derramar na Terra um tantinho de chica, um tipo de aguardente de milho, ou em enterrar um pote com comida no jardim.
Agosto, para mim, agora tem um sabor especial. Mesmo tão longe das altas montanhas e dos seus tempos sagrados, não dá para evitar sentir um certo arrepio a cada vez que compartilho um golinho de vinho com a Pachamama... mesmo que o corpo da Mãe Terra tenha só o tamaninho do meu jardim...
Adília Belotti é jornalista e mãe de quatro filhos e também é colunista do Somos Todos UM. Sou apaixonada por livros, pelas idéias, pelas pessoas, não necessariamente nesta ordem...
Em 2006 lançou seu primeiro livro Toques da Alma. Email: [email protected] Visite o Site do Autor