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O amor e o casamento - Parte 3

O amor e o casamento - Parte 3
Publicado dia 9/4/2008 4:52:09 PM em Psicologia

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Obstáculos

Eu gostaria de me dedicar agora à análise do que penso serem os maiores obstáculos à felicidade sentimental e, portanto, conjugal. Já ficou claro o que eu queria passar, que é a noção bastante evidente de separação entre sexo e amor e entre amor e casamento: o amor é um encantamento e o casamento é uma sociedade – o encantamento é apenas um dos critérios que pode definir a sociedade.

No passado, o critério era apenas racional. Nesses últimos anos, ele tem sido puramente sentimental e a minha proposta é que seja misto – para quem deseja se casar. E não há antagonismo nisso. Posso perfeitamente me encantar por uma pessoa que seja também razoável dos pontos de vista lógico e prático, viável para a vida em comum, ou seja, com maior maturidade, já que eu me encanto por pessoas mais parecidas comigo, o que significa desenvolvimento pessoal. Enquanto eu não estiver feliz como sou, de nada adianta dizer: me amo ou devo me amar. Só me contentarei com a minha maneira de ser ao conseguir ser próximo do que considero ideal. Ninguém sentir-se-á intimamente feliz caso não se pareça com aquilo que valoriza nos seres humanos. Não há chance de se enganar. Pode até tentar iludir os outros, como fazem os narcisistas, porém, conhecem a verdade e jamais poderão se aceitar como são. Por isso o trabalho é longo e penoso; o indivíduo precisa evoluir para realmente aceitar as suas limitações, conhecer-se e trabalhar seriamente no seu processo de crescimento se quiser elevar a auto-estima. E aí a tendência será para se encantar com pessoas parecidas e também para que esse encantamento seja compatível com as necessidades práticas da relação conjugal.

Uma das maiores dificuldades para uma boa vida conjugal tem a ver com a inveja, que é um sentimento muito pouco estudado. Na verdade, quem mais estudou a emoção em nosso meio foram os umbandistas, pais-de-santo e outras pessoas ligadas a esse tipo de religião, onde o tema fundamental foi sempre a inveja. Os profissionais de psicologia não gostam de temas como inveja e vaidade, a não ser que sejam vistos de passagem; ou usam os termos como se fossem claros e conhecidos em suas nuanças por todas as pessoas. Essa não é a minha posição. Para mim, a inveja é um elemento importantíssimo que deriva também da admiração, como o amor. Ninguém vai invejar alguém que não seja rico em qualidades, mas sim por admiração, do mesmo modo que amamos porque admiramos. Só que a sensação de inveja é de humilhação: o indivíduo sente-se inferiorizado ao se comparar com as qualidades da outra pessoa, ferido na sua vaidade e, por isso mesmo, com tendência a desenvolver uma reação de raiva, agressividade e revolta contra aquele que lhe provoca a inveja.

Então, quanto maiores as diferenças entre as pessoas que se unem, maior o ingrediente de inveja, que competirá com o amor. Portanto, a inveja estará presente na relação com força igual ou maior que o amor; na verdade, maior que o amor nas relações entre opostos, definindo esta posição que todos conhecem: as pessoas ficam juntas, brigam muito, mas não se separam, porque se admiram e se odeiam ao mesmo tempo por não possuírem os valores que tanto admiram uma na outra. O outro é tão rico no que não se tem... Por exemplo: se para uma pessoa tímida, que se casa com outra extrovertida, ser tímida lhe é penoso, a sua tendência é ter uma intensa inveja desta criatura. E todo tímido acha isso, porque, na psicologia americana dos últimos quarenta anos, a extroversão passou a ser qualidade, embora não fosse essa a opinião de Schopenhauer; para ele, o extrovertido é o indivíduo que não agüenta o tédio de ficar consigo mesmo.

A tendência da inveja é agressiva, é sabotagem, é tentar derrubar o outro, é fazer mal ao outro. E essa relação define aquilo que podemos chamar de "inimigos íntimos", que são a grande maioria das relações conjugais onde há briga, tensão, ações para sabotar, minar e destruir, às vezes a pretexto de ciúme, o qual é usado até para encobrir a inveja. Mas é importante lembrar que nem tudo é ciúme. Muito daquilo que se diz ser ciúme é inveja. Por exemplo: não querer que o outro vá aqui ou ali não é só por medo de ele fazer isso ou aquilo, mas porque só o fato de ele fazê-lo já é suficiente para me deixar aborrecido, pois estará fazendo aquilo que eu gostaria de fazer.

É preciso registrar, ainda, que existe um outro fator que ativa muito a questão da inveja: a imaturidade; quer dizer, o tipo humano mais narcisista, cujo perfil se define fundamentalmente como o tipo extrovertido, egoísta, agressivo, intolerante a frustrações, a arbitrariedades e invejoso, porque tem de si uma péssima avaliação. A maior prova de que ele não se ama é a enorme inveja que sente; são muito mais ferinos, maldosos e profundamente invejosos porque sabem que são um blefe! Nas relações entre opostos, quase sempre um é mais egoísta, mais narcisista, enquanto que o outro é mais generoso, "panos quentes", tolerante a contrariedades e, ao mesmo tempo, mais tímido, mais quieto e que também tem de si – principalmente no período da adolescência – um juízo muito negativo. Porém, o mais generoso tem uma inveja menos ferina, menos malvada, menos destrutiva; talvez sofra mais, mas é menos maldoso no sentido de agir para derrubar o outro. Então, um dos ingredientes que torna a inveja mais terrível é a imaturidade emocional do narcisista.

Desde 1980, em meu livro Em Busca da Felicidade, faço severas restrições à generosidade. Mas ela é, sem dúvida, um passo adiante em relação ao egoísmo, que é uma coisa meio subumana. É o homem sem razão, sem lógica, querendo só cuidar do que é seu, exatamente como qualquer animal. E o generoso é meio sobre-humano. Ele "passa do ponto", fica mais para santo do que para humano; certamente, um reforça o outro, formando uma associação que chamo de "amor entre opostos", amor por diferenças e que Erich Fromm, em A Arte de Amar, denomina de "relação sadomasoquista", sendo que o generoso é o masoquista e o egoísta é o sádico. Não aprecio esses termos por causa da conotação sexual que está implícita neles, até porque, para mim, a questão não é sexual.Existe um outro elemento ainda que considero muito importante: a inveja entre os sexos. Freud já falava, em parte, sobre a inveja que algumas mulheres costumam ter dos homens por causa do pênis. Desenvolvi mais extensivamente o tema da inveja masculina no meu livro “Homem: Sexo Frágil?”, que, a meu ver, é muito maior que a feminina. A grande maioria dos homens inveja as mulheres. E isso principalmente porque durante o período da adolescência eles as desejam muito mais do que se sentem desejados. Por volta dos 14 anos, eles se apaixonam pelas meninas e elas praticamente os ignoram, provocando-lhes uma sensação de inferioridade, rejeição, humilhação, que parece não desaparecer jamais. Fica uma espécie de espinho engasgado na garganta e que, na minha opinião, está na origem de todo o machismo; esse prazer masculino de derrubar, agredir, depreciar, insultar as mulheres é, seguramente, dor-de-cotovelo, a qual deriva dessa sensação de inferioridade sexual.

Portanto, há diferenças entre o feminino e o masculino basicamente ligadas à importância da visão como desencadeadora do desejo sexual. Isso na adolescência se transforma em algo que os homens sentem como grande inferioridade. Esta também foi a visão de Freud, cuja observação consta em uma pequena nota de rodapé em um de seus melhores trabalhos intitulado “O Mal-Estar na Civilização”, onde deixou um germezinho disso ao dizer que o que aconteceu com o homem foi a passagem, por força da evolução "genética", da importância do olfato para a da visão. A partir desse livro comecei a desenvolver esse aspecto até o limite de sua importância fundamental por não ser um fato qualquer; a passagem para a visão determina a posição ativa masculina, o que incomodou muito as feministas nos anos 70, nos Estados Unidos, e no início dos anos 80 aqui no Brasil; a palavra "ativa" é registrada pelos homens não como algo que implica superioridade, mas sim inferioridade, porque ser ativo não é uma vantagem: aproximar-se de uma mulher e poder ouvir um "não" é uma sensação de risco que não agrada a ninguém.

A inferioridade sexual masculina logicamente também está presente na "hora agá". O homem pode fracassar e o seu fracasso é ostensivo, é público; toda a cultura machista, curiosamente, louvou as vantagens do homem até para neutralizar essa inferioridade; isto atrapalhou ainda mais, porque depois ele não conseguiu corresponder a essa superioridade masculina que a cultura tanto louvou! Sabem por que? Porque ela é falsa! O machismo oprime, antes de tudo, o próprio homem. Então, na "hora agá" pode não haver ereção. E como é que fica o homem diante dessa possibilidade o tempo todo? Sentindo-se cada vez mais inferior. Aliás, quanto mais se louvar uma superioridade que não existe, mais inferior ele vai se sentir – e obviamente com raiva; mas não é uma raiva que se origina do nada: é raiva do homem que queria ser mulher. Há aqueles que sabem disso e aceitam essa verdade mais docilmente – talvez sejam invejosos menos perigosos. Os homossexuais muitas vezes ostentam essa postura e no limite disso estão os travestis. Não há muitos casos do contrário, ou seja, há muito mais homens querendo ser mulher do que vice-versa (o carnaval é prova disso). Então, são fatos e não hipóteses. A inveja feminina é menor e não é universal.

Muitas moças, quando crianças, quiseram ser homem pelas vantagens sociais que esse fato implica: o menino pode brincar na rua, fazer xixi de pé no banheiro, na estrada, no carro, etc. Enfim, pequenas vantagens técnicas. Ao chegarem por volta dos 14 anos – especialmente quando começam crescer os peitinhos, se tornam mais bonitinhas e os meninos começam a mexer com elas – se esquecem rapidamente de que queriam ser homem. Agora, o que desejam é provocar os homens e tê-los nas suas mãos. Pode ser ainda que reste uma pequena irritação contra os homens, vestígios do tempo da infância, que, em certas mulheres, se transforma em um desejo de dominação às vezes mais maldoso, causador de dificuldades sexuais nessas pessoas. A não-aceitação da condição feminina é coisa importante, mas não é esse o tema aqui.

Há, ainda, um outro fator ligado a essa escolha entre opostos, comum nos primeiros anos da mocidade: é o elemento erótico, que muito freqüentemente puxa para um encantamento entre opostos. Especialmente na psicologia masculina, a sexualidade acaba se relacionando à raiva, à agressividade, mais do que ao amor. Uma das coisas mais tristes da psicologia masculina – e uma das mais difíceis da relação homem/mulher – é o fato de que o desejo sexual masculino é muito maior quando existe um certo ingrediente de raiva e não um grande amor.

No entanto, no grande encantamento amoroso e, sobretudo, na paixão, a tendência é para total inibição sexual masculina – pelo menos durante um certo tempo. Isso deu origem, por exemplo, ao amor romântico nos séculos XVIII e XIX, quando todos os poetas louvaram o amor verdadeiro como sendo platônico, ou seja, assexuado, e quando o encantamento amoroso era de tal importância que o sexual passou a ser rebaixado. Talvez a ternura crescia a ponto de bloquear o tesão. Mas, no meu entender, o fenômeno é mais complicado do que isso. A ternura, quando cresce, corre pelo mesmo caminho, obstruindo o tesão que se ativa mais pela raiva e pela agressividade; toda a cultura masculina é nesse sentido.

Diga-se a propósito que os próprios palavrões, que são terminologia basicamente masculina, são o reflexo claro disso: eles definem essa associação entre sexualidade e agressividade. São termos de conotação claramente sexuais usados com o intuito agressivo, definindo essa relação entre sexualidade e agressividade, presente na maior parte dos homens, e que sem dúvida pode levar um homem a se encantar por uma mulher que lhe provoca raiva e, conseqüentemente, tesão e não amor. E a mulher que provoca raiva em geral é o oposto dele, o que o irrita muito; pessoas que agem e pensam de maneira totalmente diversa da nossa acabam provocando raiva, e essa raiva pode provocar o tesão. E se o elemento erótico for muito importante na escolha, mais do que o elemento racional e de admiração que define o amor, pode perfeitamente ser mais um fator que levará a uma escolha inadequada, que é evidentemente o maior problema das relações conjugais.


por Flávio Gikovate

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Sobre o autor
flavio
Flávio Gikovate é um eterno amigo e colaborador do STUM.
Foi médico psicoterapeuta, pioneiro da terapia sexual no Brasil.
Conheça o Instituto de Psicoterapia de São Paulo.
Faleceu em 13 de outubro de 2016, aos 73 anos em SP.
Email: [email protected]
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