O maldito Labirinto do Fauno é assim. E os motivos por trás disso eu não conseguia descobrir, até porque não queria rememorá-lo, muito menos assistí-lo de novo (nem sequer falei dele aqui). Foi quando encontrei o texto abaixo, feito por duas psicólogas junguianas (Jung é o "Joseph Campbell da psicologia"). Só como exemplo, a direção de arte do filme faz uso abundante de espirais, que simboliza ancestralmente o nascer, o sol, a vida, o mundo de cima, a transformação pelas experiências exteriores (no sentido horário). Já no sentido inverso representava a lua, a morte, o outro mundo, o mundo de baixo, o mundo dos sonhos e alucinações, intuição, as experiências transformadoras vindas do nosso interior. Como toda análise de filme, quem não viu (e pretende ver) é melhor não ler pra não estragar a experiência.
Aclamado mundialmente, O Labirinto do Fauno ganhou 3 Oscars de Melhor Direção de Arte, Melhor Fotografia e Melhor Maquiagem. Ganhou o Independent Spirit Awards de Melhor Fotografia. 3 prêmios BAFTA de Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Maquiagem e Melhor Figurino. 7 prêmios no Goya de Melhor Revelação Feminina (Ivana Baquero), Melhor Roteiro Original, Melhor Maquiagem, Melhor Som, Melhores Efeitos Especias, Melhor Fotografia e Melhor Edição.
O LABIRINTO DO FAUNO: O PERCURSO MÍTICO DE OFÉLIA
Por Andrea Graupen e Lívia Campello
Psicólogas e Arteterapeutas, Pós-graduadas em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida (RJ)
O presente trabalho tem como proposta estabelecer conexões entre o filme "O labirinto do fauno" e conceitos da psicologia analítica.
Ofélia, protagonista do filme percorrerá por lugares encantados, mágicos e se defrontará com as vicissitudes de estar viva. É um percurso mítico, a jornada do herói que deve ser completada se quiser ter uma vida mais plena.
Os mitos e os contos, sob a luz da psicologia analítica, são a expressão e representação de acontecimentos psíquicos, assim como os sonhos. Utilizam-se de uma linguagem simbólica e dizem respeito às verdades mais profundas do ser humano. Jung, ao examinar exaustivamente séries de sonhos, observou seqüências completas de imagens inconscientes que continham um motivo que era recorrente. Denominou-os motivos mitológicos, que são os temas arquetípicos que habitam as camadas mais profundas (ou mitológicas) da psique. Tais conteúdos possuem um poder enorme de atração e fascínio, influenciando diretamente a humanidade.
Segundo Jung, não somos nós que vivemos os mitos, mas eles que vivem em nós. Estamos cotidianamente atualizando estas narrativas, que estão vivas desde o início dos tempos.
O filme narra a vivência de uma menina, Ofélia, que durante a Guerra Civil Espanhola encontra um mundo de fantasia para sobreviver. Neste universo ela é uma princesa que precisa cumprir algumas tarefas para que o seu Reino seja salvo. A história tem início com a mudança de Ofélia e sua mãe Carmen para uma casa no meio do bosque, onde mora o Capitão Vidal, segundo marido de Carmen. É neste contexto de conflito, mergulhada no interior da floresta, que Ofélia cumprirá o seu destino.
MÃE E FILHA: NO REINADO DA MÃE
O filme tem como pano de fundo ou como "trama", em oposição à urdidura, vivências ligadas ao feminino com elementos que são, por excelência, símbolos do feminino, e mais especificamente símbolos ligados à Grande Mãe: os ciclos de gestação, nascimento e morte, os ciclos lunares, a mãe e a filha. São alguns símbolos do arquétipo materno a Lua, a Terra, a floresta, a gruta, a árvore, o mundo subterrâneo, o útero, e é neste contexto imagético, neste reino que personifica o inconsciente, que a história de Ofélia se desenrola. Segundo Jung, temos como atributos positivos do arquétipo materno "...o que cuida, o que sustenta, o que proporciona condições de crescimento, fertilidade e alimento..." e no seu aspecto negativo "...o abissal, o mundo dos mortos, o devorador...".
Neumann refere-se à Grande Mãe como o aspecto central do Grande Feminino que traz em si uma diversidade de imagens simbólicas, que se difundiram através dos mitos, fábulas, deusas e fadas. O arquétipo da Grande mãe traz em si toda a questão dos opostos, da ambivalência, das contradições (bem-mal, luz-sombra), que só mais tarde, com a evolução da consciência, passaram a ser cultuados de forma distinta, como duas entidades separadas: fadas e bruxas. Podemos então presumir que a vivência sob a égide da Grande Mãe não seja apenas uma vivência de proteção, continência e conforto, mas também de sufocação e impedimento de crescer. A mãe que acolhe e cuida também não deixa nascer, não liberta para a vida.
Podemos também analisar a situação de Ofélia a partir de uma perspectiva desenvolvimentista, onde a criança necessita diferenciar-se dos pais rumo a autonomia.
Quando o filme se inicia a natureza está seca, morrendo. A Espanha está em guerra, o pai de Ofélia morreu deixando-a órfã, sob os cuidados da mãe. Assim como Core, Ofélia é a "filha sem pai". O momento é de conflito e a mãe casa-se novamente numa tentativa de reorganizar a sua vida e sobreviver. É um casamento por conveniência e é nítida a repulsa que ela nutre pelo Capitão com o qual se casa. Ele é a personificação do macho violador. Jung analisa, com relação ao mito de Deméter-Core que este diz respeito a uma vivência feminina tão intensa na qual o homem é praticamente insignificante. "O papel do homem no mito de Deméter restringe-se, por assim dizer, ao raptor ou violador". O masculino é a possibilidade de fazer com que mãe e filha não persistam numa relação simbiótica, a despeito do prazer contido nesta relação.
Interessante observar que, no filme, o aspecto masculino é tão imprescindível para o crescimento de Ofélia que surge não apenas na figura do Capitão Vidal, representando o seu aspecto mais terrível, mas também aparece enquanto neném (aspecto mais positivo) já que a mãe espera um filho homem.
Deméter, por ter sido violada por Zeus, repudia o sexo e afasta de sua filha possíveis pretendentes. O mito traz o aspecto do feminino que rejeita o masculino. Qualquer alusão ao encontro com o sexo oposto é repudiada, principalmente porque significa afastamento da prazerosa relação mãe e filha.
Ofélia depara-se com a imagem da desolação. A árvore, uma figueira, símbolo do feminino está minguando. É o momento de deparar-se com a própria imagem de depressão materna. A mãe real está doente. Paradoxalmente grávida e doente. Assim como a personificação do arquétipo feminino contém em si a própria contradição.
Se por um lado Carmen está grávida, prenhe de vida, por outro está doente, à beira da morte. Simbolicamente a mãe de Ofélia está morrendo, assim como Deméter, que se retira do convívio, pois não aceita a separação de sua filha querida. A imagem da árvore ressecada remete ao aspecto da mãe enlutada. Deméter, também conhecida pelo epíteto de Mélaina, a negra, é a imagem da mãe que não consegue se separar de sua cria, aquela que tem como função principal ter filhos e cuidar de sua prole. Ao mesmo tempo doadora de vida, ela é também a personificação do arquétipo da mãe negativa. Na iminência de separar-se de sua filha, a mãe de Ofélia contorce-se em dores, assim como Deméter:
A separação refere-se basicamente a um aspecto de distanciamento psíquico; no referido caso tal afastamento se dá pela entrada do aspecto masculino. Para que Ofélia possa se desenvolver ela necessita separar-se da mãe, despotencializar o complexo materno positivo, trazendo-o à consciência. Deméter e Core, também chamada de "As Deusas", representam o aspecto duplo do feminino: a velha e a jovem, nascimento e morte.
Outro aspecto marcante no filme e que nos remete ao mito de Deméter é a alusão ao ciclo lunar. Ofélia deve realizar três tarefas antes da próxima Lua cheia.
Consoante o Dicionário de Símbolos, a Lua é um símbolo amplo e difundido em diversas culturas. Está vinculada com a dependência (solar e masculina) e com o princípio feminino. Já que tem diversas fases e se transforma, simboliza também a passividade, o inconsciente, além da fecundação e o ritmo biológico. Por ter seu período de três noites sombrias, apagada, como morta, ela simboliza também o primeiro morto. "A Lua é para o homem o símbolo desta passagem da vida à morte e da morte à vida". Muitas vezes associada às divindades ctônicas, como à própria Perséfone, conhecida como Rainha dos Mortos ou do subterrâneo.
Brandão elucida que, nos Mistérios de Elêusis, os Iniciados (nome dado aos participantes do culto) através dos rituais se conectavam com a possibilidade de bem-aventurança após a morte. Tais rituais possibilitavam uma transformação dos indivíduos que participavam da morte simbólica de Perséfone, da descida e de seu retorno, "como a semente que morre no seio da terra e se transmuta em novos rebentos". Tal transformação pode se relacionar com as fases da Lua: cheia, nova, minguante e crescente. A semente (Perséfone) está enterrada, não está morta, assim como a Lua nova está apenas cumprindo o seu ciclo de morte e renascimento. No caso de Ofélia, cumprir as tarefas antes da próxima Lua cheia está diretamente relacionado com o fato de ela ter que seguir o ritmo da natureza. No plano biológico, talvez indicando o início da puberdade e menarca, no plano psicológico indicando que ela deve estar de acordo com sua vida instintiva feminina e seguir seu próprio caminho.
CRONO: A ENTRADA DO PATRIARCADO
No filme, com o novo casamento da mãe, e esta esperando um outro filho, Ofélia vê-se em contato com a possibilidade da entrada do masculino nesta relação simbiótica. Contudo, o masculino apresentado está vinculado a um ambiente conflituoso, hostil e também unilateral - onde não há espaço para interlocuções com o feminino. O Capitão destaca-se por características masculinas como a rigidez, autoritarismo e racionalidade excessiva. Está vinculado ao tempo linear e cronológico; representado pela sua constante atenção ao relógio que fora do seu pai, fazendo alusão ao Mito de Crono. Baseado na narrativa de Jean-Pierre Vernant, conta este mito que, no período do surgimento do universo, Gaia - a Terra, gera Urano - o céu. Urano, do mesmo tamanho de Gaia, permanece deitado sobre ela. A Terra, grávida de Urano, aloja seus filhos que, por determinação deste, são impelidos a ficarem dentro dela.
Gaia não estava satisfeita com esta situação e, com raiva, propôs aos filhos rebelar-se contra Urano. Crono - o filho mais jovem, prontificou-se e, com uma foice feita por Gaia, castrou seu pai. Cortou-lhe o testículo e os jogou no mar. Com o ato de Crono, Urano, o céu, distancia-se de Gaia. Instala-se bem no alto, de onde não mais sairá. Cria-se o espaço. Os filhos já podem sair de dentro de Gaía, surge uma nova geração.
Crono é assim o pai do tempo, o "tempo cronológico", ele instaura a diferenciação; a temporalidade é demarcada pela chegada do novo. Crono é o terceiro elemento, aquele que divide a unidade. Para Raissa Cavalcanti, "O deus do tempo organiza e cria o mundo psíquico, estabelecendo a distinção entre presente, passado e futuro". Através do seu ato, possibilita a criação dos opostos: Urano e Gaia. Pela castração se dá também a separação de todos os opostos: pai/mãe, macho/fêmea, ódio/desejo. A castração é, antes de tudo um ato de criação, já que cortar os testículos e derramar o esperma (do grego spérma/semente) está intimamente ligado com a semeadura da própria terra. Crono, ao castrar Urano, separa o ato de colher com o de semear, representando de início o tempo agrário.
Crono é o arquétipo do pai agente da lei, discriminador, o surgimento de um novo ciclo: a saída do mundo instintivo, da natureza, para a temporalidade, história e cultura. Demarcando assim limites entre o mundo matriarcal e patriarcal. Raissa Cavalcanti ainda se refere a Crono como um "Deus fazedor de consciência":
Crono insere um novo tempo que se sobrepõe ao tempo de seu pai, Urano. O tempo não é mais urobórico, onde os "pais divinos" formam o uno, não existe mais a plenitude da imagem primordial. Contudo, retomando a analogia com o filme, percebe-se que Ofélia recusa a tentativa da vivência deste masculino. E, contrapondo esta realidade, encontra num mundo fantasioso a possibilidade de transformação e integração dos aspectos femininos e masculinos de sua psique. De acordo com Raissa Cavalcanti, a criança em seu desenvolvimento saudável necessita da vivência da fase matriarcal e depois da fase patriarcal, para então se diferenciar e encontrar sua autonomia enquanto indivíduo.
A quebra da onipotência materna e da aceitação da lei do pai é de extrema importância para a diferenciação do sujeito que, ao entrar na tríade familiar, tem possibilidade de encontra seu lugar no mundo e nas relações de forma autônoma. Ofélia não se disponibiliza para a experiência deste real cruel e violento; no filme, parece que o Capitão vive o pólo rígido de Crono: teme perder o poder e a ordem vigente. Sobre este aspecto, Cavalcanti diz que "o deus introdutor do patriarcado domina as forças matriarcais . Todo autoritarismo e rigidez têm origem no medo da perda do controle consciente e da invasão de impulsos inconscientes".
A partir deste medo - não infundado - de perder o controle, Crono decide ele mesmo engolir seus próprios filhos. Agora não é mais a mãe que retém seus filhos no ventre, mas eles estão mergulhados nas entranhas do pai. Apenas num terceiro momento, sob o domínio de Zeus, se instalará uma nova ordem: o Logos.
CONSIDERAÇÕES
Percebemos que inicialmente Ofélia, imersa no mundo da mãe, e estabelecendo com ela relação indiferenciada, tinha uma vivência mais ligada ao inconsciente. Ao longo de sua "jornada labiríntica", e do cumprimento das tarefas a ela destinada, inicia a diferenciação materna possibilitando a entrada do masculino, aproximando-se assim sua vivência inconsciente da consciência.
Poderíamos dizer que Ofélia vivencia a Sizígia, ou seja, a união dos opostos; que, nas palavras de Jung, significa "quando um deles jamais está separado do outro. Trata-se daquela esfera de vivência que conduz diretamente à experiência da individuação, ao tornar-se si-mesmo".
A última tarefa de Ofélia está relacionada com o surgimento do novo; através do seu irmão que acaba de nascer - há agora um masculino que se apresenta menos cruel e mais acessível. Tal nascimento se dá juntamente à morte do primeiro referencial feminino de Ofélia; morrendo também sua própria imagem anterior, unilateral, que, ao entrar em seu reino, encontra masculino e feminino, convivendo em harmonia.
Sua experiência criativa parece ser uma preparação, ritualística; que inicia o rito de passagem da infância para a adolescência. Este mecanismo pode ser compreendido como uma experiência auto-reguladora da psique, que faz parte do desenvolvimento infantil saudável. De acordo com Jung, o simbolismo da criança está ligado ao desenvolvimento em direção à autonomia; sobre este tema arquetípico, ele diz que "no processo de individuação antecipa uma figura proveniente da síntese dos elementos consciente e inconsciente. É, portanto, um símbolo de unificação dos opostos, um mediador, ou um portador da salvação, um propiciador de completude".
Dessa forma Ofélia pode completar o seu percurso de vida, morte e renascimento.
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