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O 'EU' no Budismo e o Livro dos Mortos - Parte 1

O 'EU' no Budismo e o Livro dos Mortos - Parte 1
Publicado dia 3/26/2009 3:15:29 PM em Espiritualidade

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O Dalai Lama nos fala, numa extensa e detalhada introdução ao livro Tibetano dos Mortos (em inglês, The Tibetan Book of the Dead: First Complete Translation - Penguin Classics), sobre o "eu" e a reencarnação. Ele começa esclarecendo um ponto muito importante e pouco divulgado do budismo: no ocidente têm-se a crença de uma alma indivisível, pura, separada da mente (que chamamos de "eu" ou "ego", enquanto a alma é referida como "Eu"). No budismo não há uma coisa assim, pois o que nós chamamos de "eu" é um agregado de valores, todos interrelacionados e em constante mudança, o que inclui especialmente os "5 agregados do apego":

- O corpo (Rupa);
- Os sentimentos (Vedana);
- As percepções (Samjña);
- Construções mentais; (Samskara);
- A consciência (Vijñana).

Estes cinco agregados não são um "eu"; a crença em um eu (Satkayadrsti) emerge desses cinco agregados, que causam o apego e a crença de que estas partes são um "eu". A coisa é mais complexa, e o ciclo que envolve o apego e a crença num "eu" é demonstrado em 12 passos, que são os doze elos da originação interdependente. Tudo isso está agindo por meio da causa e efeito, numa cadeia complexa que poderia ser comparada a um relógio suíço.

Esse conceito, que os budistas chamam de Anatta (do sânscrito anâtman, ou não-alma), pode ser sintetizado na frase "não há coisa alguma com um eu". Está de acordo com a doutrina do desapego, levada ao extremo de desapegar daquilo que compõe um "eu" e nos mantém aprisionados na Matrix. Então a dúvida que surge na mente ocidental, acostumada a uma "alma", é: "E como surgiu a PRIMEIRA idéia de alma que nós temos, e que nos levou à consciência, que deu origem às construções mentais, que deu origem à matéria, que deu origem às percepções e aos sentimentos?". O Dalai Lama nos fala que se originou de um pequeno despertar de consciência, que está ligado a outro despertar de consciência, e outro, e outro, num continuum parecido com o dilema que os cientistas enfrentam com o Big Bang (o que veio antes do Big Bang? E antes? E antes?).

Jogue o jogo da "Existência" até o fim... do começo...
(John Lennon; Tomorrow Never Knows)

Você pergunta "Então, se não existe alma, como pode haver reencarnação?" Não há problema algum, se você prestou atenção ao segundo parágrafo. Nós acreditamos tanto ser um "eu" que mantemos nossos elementos agregados mesmo depois da morte. Mas não exatamente todos, como Dalai Lama frisa no livro. Como há elementos dependentes do seu veículo físico (corpo), como a percepção, os condicionamentos e preconceitos derivados do seu meio, os sentimentos que podem ser resultados de sua criação nessa vida, esses podem se perder ao abandonarmos o corpo (e cessar o estímulo, como um músculo que atrofia por falta de uso). Acredita-se que, se você morrer velho e esclerosado, pode perder sua memória em vida e não a recuperar na morte (ao contrário do que acreditamos no espiritismo, por exemplo), não porque a memória "morra" com o cérebro, mas por falta de condicionamento do agregado de recordar ainda em vida (e um distanciamento corpo x mente). Se alguém morre jovem, com total energia corpo x mente, pode reencarnar mantendo todo o seu "falso eu". Mas o que o Dalai Lama fala é que essas memórias podem durar no máximo alguns anos, porque há causas e efeitos que acabam por sobrepujar a relação corpo x mente anterior. Poderíamos comparar a idéia de "eu" com a idéia de karma e causa-efeito usando como exemplo o céu: Se hoje está chovendo, é por conta de elementos que se combinaram ontem ou horas antes para causar aquele efeito, mas, sem que percebamos, outros elementos podem estar se combinando neste momento para, no outro dia, fazer um belo dia ensolarado, e ainda assim chamamos o "palco" de céu. Da mesma forma nós mudamos continuamente (com a combinação de elementos perceptíveis e imperceptíveis, numa relação de causa e efeito) em (E em sucessivas vidas.) vida(*) e, mesmo sabendo que não somos mais os mesmos de 20 ou 30 anos atrás (mentalmente e inclusive fisicamente, pois quase todas as células do nosso corpo já morreram e renasceram), ainda nos consideramos "nós mesmos", numa linha temporal. Em nenhum momento no budismo se considera que o que está se reencarnando é outra pessoa, e sim aquele "agregado de consciência" que pode estar totalmente transformado ou não, a depender muito de inúmeras variantes que fazem essa engrenagem cósmica funcionar.

Este pensamento não é só uma teoria que está empoeirada num livro e trazida somente como curiosidade, pois é o cerne do budismo: a impermanência de tudo (inclusive o "eu"), a não identificação com nada (inclusive o "eu") e, consequentemente, o fato de que não se deve rotular alguém como algo, porque para o budismo não existe um assassino, mas uma consciência imersa na ignorância e que cometeu erros, mas que pode sair da ignorância, até porque toda a nossa experiência neste plano de existência é um grande convite para a mudança, mesmo que não nos apercebamos (leiam ou releiam a parábola Angulimala Sutta de Buda e vocês a entenderão com novos olhos). Há aí um forte componente psico-social no budismo, pois pra essa doutrina não existe nada quebrado que não possa ser consertado, sendo que ambos são condicionamentos baseados na causa e efeito. Como disse o próprio Buda no momento da iluminação: Essencialmente todos os seres vivos são Budas, dotados de sabedoria e virtude, mas como a mente humana se inverteu através do pensamento ilusório, não o conseguem perceber. Isto é aplicado na prática em Pernambuco, pelo Neinfa, na promoção da resiliência em adolescentes que vivem em situação de risco, dentro da cidade/favela do Coque.Mais ainda: dentro dos conceitos da doutrina, os budistas são ensinados a não alimentar ilusões sequer de iluminação (a "meta" do budismo!), como podemos ver no ensinamento do patriarca chinês Lin-chi, no séc. IX:

Seguidores do caminho, se você desejar ver o Dharma claramente, não deixem ser iludidos. Se você se voltar para o exterior ou para o seu interior, o que quer que você encontre, mate-o. Se você se encontrar com o Buda, mate o Buda; se você se encontrar com os patriarcas, mate os patriarcas; se você se encontrar com Arhats, mate os Arhats; se você se encontrar com seus pais, mate o seu pais; se você se encontrar com seus parentes, mate seus parentes; então, pela primeira vez, você verá claramente. E se você não depender das coisas, haverá emancipação, haverá liberdade.

A finalidade deste ensinamento não era, obviamente, incentivar o homicídio (um dos preceitos budistas é não matar), mas sim o desapego, não só das coisas físicas como das tradições, das cerimônias, da expectativa de uma iluminação por conta de certas práticas. Esse é o ensinamento budista mais valioso, exposto da forma mais radical e efetiva (não tomada literalmente, claro).

O que é um pouco mais teórico é a crença de que esses agregados habitam três mundos, que se subdividem em outros níveis (ou reinos). Pra facilitar pra nossa mente ocidental, vou chamar esses mundos de "dimensões", já que estamos acostumados com o conceito:

DIMENSÃO DO DESEJO (KAMA-LOKA)

Onde a motivação do "eu" é o desejo. É esta a dimensão que habitamos. Ela se subdivide em 5 reinos:

O Reino do Inferno (onde habitam as mentes dominadas pela raiva e pelo ódio);
O Reino dos Fantasmas Famintos (mentes dominadas pela ganância ou cobiça. Neste estado, nunca podemos obter o que queremos, nem podemos desfrutar da comida ou bebida que desejamos desesperadamente como fantasmas famintos);
O Reino Animal (mente que caiu sob a influência da cegueira, da estagnação mental e da estupidez. Nesse estado não é possível praticar o Dharma);
O Reino Humano (a primeira das existências nos reinos superiores. Os humanos são praticamente os únicos seres dotados das condições necessárias para o progresso espiritual, assim com as faculdades que permitem a prática e a compreensão do Dharma);
O Reino dos Deuses Invejosos (quando o karma é, acima de tudo, positivo, porém misturado com a inveja, a causa é o nascimento no reino dos deuses invejosos. Este é um estado feliz, dotado de muitos poderes e prazeres mas, por causa da força da inveja, há constantes brigas e conflitos. Os deuses invejosos opõem-se aos deuses que são seus superiores e brigam entre si mesmos. Parece ter inspirado o roteiro de Cavaleiros do Zodíaco, ou as tragédias gregas);
O Reino Divino (karma positivo combinado com pouquíssimo karma negativo resulta em um renascimento nos estados divinos, onde os deuses se comprazem em serem adorados. É alguém como o Shaka de Virgem, que ainda (Tenho pra mim que Jeová, o Deus brabo do Velho Testamento, possa ser uma manifestação de algo assim.) quebra-pau(*) ocasionalmente com os deuses invejosos);

DIMENSÃO DA FORMA SUTIL (RUPA-LOKA)

Ela se subdivide em 17 reinos. Os seres nestes estados têm uma forma sutil e corpos extremamente grandes, luminosos; suas mentes conhecem poucas paixões, poucos pensamentos; e eles desfrutam de uma felicidade incrível. A paixão predominante é o orgulho sutil - os seres destes reinos acham que atingiram algo superior e vivem um tipo de auto-satisfação. Estes estados da dimensão da forma sutil correspondem aos quatro níveis de concentração meditativa, caracterizados pela transcendência progressiva da investigação, da análise, da alegria e do êxtase.

DIMENSÃO SEM FORMA (ARUPA-LOKA)

Finalmente, além até mesmo destes quatro níveis de concentração do reino da forma, pode haver o nascimento no reino sem forma. Os seres deste reino não experienciam qualquer sofrimento severo e virtualmente não têm quaisquer paixões; eles permanecem apenas em uma forma extremamente sutil. Eles têm apenas o quinto agregado da individualidade - a consciência - ainda presente como uma ignorância sutil que lhes dá o sentimento de existir neste corpo sem forma. Essa idéia, que permanece em suas mentes, é um tipo de estagnação mental, que impede a realização da natureza última da mente e que acaba por agir como uma mãe que dá à luz os outros agregados. Tais deuses ainda estão sujeitos à morte e à transmigração, e, por não terem o poder de permanecer em sua condição divina eternamente, sofrem e acabam tendo de renascer em um reino inferior.

Isso porque todos estes estados são transitórios e condicionados: todos eles são parte da roda do Samsara. Para ser livre do samsara, a consciência em si deve ser definitivamente transformada na sabedoria primordial, a sabedoria da iluminação.

Continua...


por Acid

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Sobre o autor
acid
Acid é uma pessoa legal e escreve o Blog www.saindodamatrix.com.br
"Não sou tão careta quanto pareço. Nem tão culto.
Não acredite em nada do que eu escrever.
Acredite em você mesmo e no seu coração."
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