Suécia, 1640. Numa viagem de navio à Suécia, a tripulação foi informada de que o filósofo francês René Descartes viajava com sua filha Francine, mas até então ninguém a vira a bordo. Desconfiados e atemorizados durante uma violenta tempestade, os supersticiosos marinheiros vão em busca de Descartes e sua filha, mas no aposento deles só encontram tudo revirado e, dentro de um baú, uma boneca como nunca haviam visto, totalmente articulada, feita com partes de metal e engrenagens de relógio. Temendo ser uma arte diabólica, o capitão manda jogá-la no mar.
Descartes havia construído um simulacro de sua filha, após a morte da mesma, aos 5 anos de idade. Tratava a boneca como "Ma fille Francine", possivelmente sem distinção entre ela e sua falecida filha, bem de acordo com sua filosofia explicitada em seu livro "Tratado do Homem", onde o Homem é máquina, pois o Homem possui um corpo capaz de movimento resultante do engenho divino, enquanto um autômato possui um corpo capaz de movimento resultante do engenho humano. Seja qual for a relação entre Descartes e a boneca, 6 meses após a "segunda morte" de sua filha, Descartes veio a falecer.
Japão, 2008. O professor Hiroshi Ishiguro coloca sensores em sua boca e começa a falar num microfone. Na sala ao lado seu robô -Geminoid HI-1, uma cópia dele mesmo cujo corpo se move e respira de forma autônoma- imita os mesmos movimentos labiais, com a voz do verdadeiro professor saindo pela boca da máquina. A idéia de Ishiburo é desenvolver um andróide perfeito, que simule não só a aparência, como a "presença humana", aquilo que nos faz ter a certeza de se estar olhando uma coisa viva, e não um boneco. Para isso, é preciso desenvolver uma "alma" para o robô.
O Japão é o lugar ideal para este projeto, pois o Xintoísmo [de shin (espírito) e to (estudo)], a religião mais próxima do povo japonês (mais que o budismo), que trata da relação do homem com o espírito, que está em toda parte (na Lua, no rio, na (O Monte Fuji é reverenciado por lá como se fosse uma pessoa.) montanha(*), nas pedras). Baseado nisso, Ishiguro afirma que "assim como não distinguimos entre humanos e pedras, não fazemos distinção entre humanos e robôs".
De fato, o jornalista canadense Timothy N. Hornyak testemunhou em seu livro "Loving the Machine: The Art and Science of Japanese Robots" que, quando os robôs industriais foram introduzidos nas fábricas, eles foram recepcionados com rituais xintoístas e considerados parte integrante do quadro de funcionários. Masahiro Mori, autor do livro "The Buddha in the Robot", acredita que robôs podem ter natureza búdica, ou seja, são Budas em potencial. Isso quando os seres humanos têm uma relação íntima com as coisas que eles criam: "Se você faz algo com afinco, seu coração estará naquilo que você está fazendo. Então o robô será uma exteriorização do seu Eu, assim como um filho, e, sendo assim, o robô também será seu filho".
Ishiguro agora planeja desenvolver um robô com mais sensores e cordas vocais, para que ele aprenda movimentos e sons através de estímulos externos, assim como uma criança faz.
Japão, 2009. Um sistema capaz de mover um robô com o pensamento foi apresentado pelas companhias japonesas Honda e Shimadzu. A tecnologia permite que as mensagens cerebrais sejam transmitidas por meio de uma máquina acoplada à cabeça de um homem.
Ásia, em um futuro não muito distante. Implantes biônicos substituem músculos e carne. Pessoas inteiras, feitas de partes robôs, são a evolução natural da espécie. Controlados pela mente humana, a única coisa que os diferencia é o GHOST, o fantasma, a alma que habita a carcaça metálica. E é questionado se até mesmo ela, a alma, pode ser algo "irreal", manufaturado. Surge então a notícia de que um hacker está invadindo carcaças e, possivelmente, almas, controlando-as para seus propósitos.
Esse é o roteiro do Anime japonês "Ghost in the Shell" (que vou abreviar pra GITS). Lançado em 1995, se tornou objeto de culto no meio cinematográfico, aclamado por Spielberg e influenciando o visual do filme The Matrix (que anteontem completou 10 anos de existência). Pode ser considerado o sucessor espiritual de Blade Runner, tanto no conteúdo como no visual, e leva adiante a discussão em torno da relação homem X máquina.
A vida é como um nó que nasce dentro do fluxo de informações. Como uma espécie de vida que carrega o DNA como seu sistema de memória, o Homem ganha sua individualidade das memórias que ele carrega. Enquanto memórias possam ser o mesmo que fantasia, é por estas memórias que a humanidade existe. Quando os computadores tornaram possível externalizar memórias, você deveria ter considerado todas as implicações disto.
No Japão GITS não fez muito sucesso, talvez pelo seu estilo contemplativo e trama levemente confusa. Seja como for, GITS tem seu mérito pelo visual primoroso e conteúdo filosófico que, entretanto, não é nada se comparado à sua continuação: "Ghost in the Shell: Innocence". Com ajuda maciça da computação gráfica, o diretor/escritor Mamoru Oshii conseguiu o que pra mim é o mais bonito Anime de todos os tempos, com uma dose cavalar de referências e citações filosóficas, nos levando a repensar o tempo todo a relação real X artificial, criador x criatura, citando, inclusive, a história de Descartes acima.
A essência da vida é a informação transmitida dos genes. Sociedade e cultura são nada mais que sistemas gigantes de memórias. A cidade é só um enorme dispositivo de memória externa.
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Tristeza pela morte de um pássaro, mas não pela morte de um peixe. Felizes aqueles que têm voz (Saito Ryokuu)
Acid é uma pessoa legal e escreve o Blog www.saindodamatrix.com.br "Não sou tão careta quanto pareço. Nem tão culto. Não acredite em nada do que eu escrever. Acredite em você mesmo e no seu coração." Email: Visite o Site do Autor