Recentemente, conversando com Lama Gangchen Rinpoche sobre a dificuldade que temos, tanto de dar como de receber, perguntei a ele se não haveria também a generosidade de receber. “Sim!” ele exclamou, e disse: “Dar e receber é algo que aprendemos com o estilo de vida da sociedade em que fomos educados. Noto que na sociedade ocidental as pessoas costumam desconfiar quando recebem algo sem uma razão aparente. Por exemplo, se um estranho lhes oferece uma coisa na rua, elas imediatamente rejeitam”.
O hábito mental de rejeitar é um condicionamento resultante de nossa educação, e não da pura natureza humana.
A natureza, tanto animal quanto humana, é espontaneamente generosa, pois seu instinto de sobrevivência visa cuidar e preservar a vida. Neste sentido, a generosidade não é uma questão moral ou uma virtude religiosa. Ela faz parte de nossa capacidade de viver em grupo, isto é, de cooperar. No entanto, devido à luta natural das espécies entre si, as sociedades aprenderam a competir, a lutar e a se defender.
No Ocidente, como o espírito competitivo domina sobre o cooperativo, perdemos a naturalidade da gentileza humana. Lama Gangchen nos lembra que temos de aprender a dar e a receber.
Quando reconhecemos o fato de que vamos ter que desaprender para naturalmente ser quem somos, isto é, livres dos condicionamentos culturais baseados no medo e na desconfiança, podemos sentir a necessidade de reconquistar a mente pura de uma criança ou de atingir a maturidade de um velho sábio que sabe confiar plenamente em si mesmo. Mas, ambas as alternativas demandam a gradual tarefa de nos soltarmos dos arraigados mecanismos de defesa que formamos, até então...
Essa não é uma tarefa fácil!
Rinpoche nos lembra que um bom modo de aprender sobre alguma coisa é observar quem sabe fazer aquilo bem.
Quando observarmos pessoas generosas, não estamos apenas analisando-as racionalmente, estamos também nos inspirando a fazer o mesmo. Isto é, ao admirá-las despertamos em nosso interior uma força semelhante à nossa admiração.
Rinpoche nos sugere, por exemplo, observarmos as famílias nas quais a mãe, o pai e os irmãos cuidam uns dos outros. Se não tivermos contato com tais pessoas, ele diz para observarmos como os pássaros cuidam de seus filhotes.
Noto que pessoas seguras e confiantes em si mesmas são generosas. Elas não temem receber ajuda. Aliás, elas confiam que a ajuda é garantida, que sempre virá. Desta forma, não temem o abandono nem e a precariedade, pois confiam no fluxo da abundância ao compartilhar seus recursos.
Cabe ressaltar que pessoas generosas e sábias não são ingênuas. Elas aprenderam a confiar em si mesmas, no seu mundo interior. Creio que aqui temos um ponto chave: se não reconhecermos a riqueza de nosso mundo interior, não a reconheceremos nos outros. O fato é que aprendemos a reconhecer o valor das coisas externas e damos pouco valor à força de nossa capacidade interna.
Rinpoche comenta que hoje em dia os pais cuidam de seus filhos como os tulkus -Lamas reconhecidos por reencarnação- eram cuidados desde os tempos antigos do Tibete. Eles procuram atender a todas as suas necessidades!
Mas, estranhamente, quando os filhos crescem, eles não dão o devido valor ao que receberam. Isso ocorre, ressalta Rinpoche, porque eles não aprenderam a apreciar.
Ao escutar Rinpoche dizer estas palavras, refleti que nosso maior obstáculo para apreciar está no fato de termos tão pouca familiaridade em reconhecer o que se passa em nosso interior. Não nos conhecemos interiormente porque “somos viciados no mundo externo”, como diz Guelek Rinpoche.
Temos que admitir que usamos a nossa inteligência para memorizar e identificar um número infinito de objetos, fenômenos e pessoas, mas desconhecemos –e, portanto, não sabemos- o nome dos inúmeros sentimentos e emoções que se passam dentro de nós.
Aprendemos a agir no mundo externo e não a gerenciar nosso mundo interior! Conseqüentemente, temos muita dificuldade para aceitar que o mundo externo é um reflexo de nosso mundo interno!
Outro ponto que Lama Gangchen ressaltou sobre as diferenças entre a cultura ocidental e a oriental foi que, no Oriente, aprende-se a dar valor a tudo que se recebe, sem considerar seu tamanho ou seu valor.
Rinpoche observou que quando recebemos algo que não valorizamos, logo passamos isso adiante. Em outras palavras, menosprezamos o que nos foi dado ao invés de nos sentirmos gratos.
Outra diferença: no Ocidente, costumamos falar inúmeras vezes “obrigado”, mas internamente vivenciamos pouco o sentimento de gratidão. Já, no Oriente, fala-se poucas vezes “obrigado”, mas há o hábito de cultivar uma apreciação genuína por tudo aquilo que se recebe.
Rinpoche exemplifica este fato contando que, num monastério, quando os monges realizam uma cerimônia a pedido de uma pessoa, eles recebem num determinado momento uma oferenda em dinheiro, mas nem olham para ela e continuam rezando. Para nós, ocidentais, esta atitude pode parecer muito estranha. Internamente, eles estão muito gratos pela oportunidade de realizar esta cerimônia. No final da meditação, eles dedicam a todos os seres toda energia positiva acumulada por meio de suas rezas ao patrocinador.
De fato, no Ocidente, consideramos a falta de agradecimento como falta de educação, arrogância e até ingratidão. Ironicamente, quando alguém vem nos agradecer por alguma coisa, costumamos responder: “imagina, não foi nada”, “foi um prazer”. Há certa formalidade em nossa resposta. Sentimos-nos pouco à vontade diante do tão esperado reconhecimento externo.
Creio que isso ocorre justamente porque nos foi dito, desde criança, que a verdadeira generosidade consiste em dar sem esperar nada de volta. É como se tivéssemos que desconsiderar qualquer movimento do outro em nossa direção. Então, nos bloqueamos até para ouvir “obrigado”!
No entanto, quando superamos este bloqueio e nos sentimos conectados ao mundo interior daquele com quem trocamos a prática livre do dar e receber, um olhar ou a simples lembrança da experiência vivida será suficiente para nos sentir profundamente gratos.
Acessar esta memória é o nosso maior tesouro: agradecer a quem nos agradece. Neste momento, sabemos apreciar.
por Bel Cesar
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Sobre o autor
Bel Cesar é psicóloga, pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano desde 1990. Dedica-se ao tratamento do estresse traumático com os métodos de S.E.® - Somatic Experiencing (Experiência Somática) e de EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento através de Movimentos Oculares). Desde 1991, dedica-se ao acompanhamento daqueles que enfrentam a morte. É também autora dos livros `Viagem Interior ao Tibete´ e `Morrer não se improvisa´, `O livro das Emoções´, `Mania de Sofrer´, `O sutil desequilíbrio do estresse´ em parceria com o psiquiatra Dr. Sergio Klepacz e `O Grande Amor - um objetivo de vida´ em parceria com Lama Michel Rinpoche. Todos editados pela Editora Gaia. Email: [email protected] Visite o Site do Autor