Tem um dia que você acorda e descobre que vestiu seu corpo pelo lado do avesso. A etiqueta pendurada, meio rota, não deixa dúvidas: Adília Belotti. Data de Fabricação: 04/54. Data de validade ilegível, Made in Brazil... Ufa, ainda bem, sou um produto local, só me faltava ter sido jogada num conteiner de Adílias brasileiras Made in China!
Nenhuma explicação, nada, mas aquele corpo do avesso começa a incomodar: a pressão sobe, os hormônios enlouquecem, comer alface engorda, colesterol bom baixo, ruim alto, curva glicêmica na montanha-russa, quem é esse corpo, afinal, que até então eu desconhecia e que agora, do avesso, me obriga a prestar atenção.
Os exames de rotina são páginas e páginas de letras miúdas e, em vez de minutos, o tempo gasto nos laboratórios a gente conta em dias!!! Esse corpo do avesso tem uma geografia própria, feita de palavras com muitas sílabas: creatinina soro, transaminase glutamico oralacetica soro, hemocisteína... Opa, uma palavra conhecida, embora meio passè: urina, exame de…
E segue uma lógica peculiar: calor ou frio, por exemplo, desde quando foi que isso deixou de ter a ver com o clima?
É suscetível, como os gauleses: “Água com gás pode aumentar a pressão”, me diz o médico. “Jura, doutor?” Água??? É, eles injetam gás na água e o lado do avesso do seu corpo detesta…
E rabugento: Teste de esteira? Coisa perigosíssima... o médico se compadece, “pode parar, não está tão mal, mas…”
Reposição disto, daquilo, vitamina para isso e aquilo. Meu avesso é também enjoadinho, lembra um… poodle: “Além do protetor solar 30, que você deve usar mesmo que não vá tomar sol” - sempre desconfiei daquelas luzes fluorescentes, não bastava serem horrendas… -, “Adília, preste atenção para não inverter a ordem”, sim, sim, estou prestando, “bom, vou indicar um creme para o contorno dos olhos, passe pela manhã e à noite, outro para os cantos da boca, S-E-M-P-R-E, um para as rugas, mas só à noite, DMAE para um “efeito cinderela” instantâneo, sim, e hidratação em todo o corpo, M-U-I-T-A, umas três vezes por dia!!” ...Tento acompanhar as recomendações da dermatologista de pele perfeita, mas viajo: Três vezes? Vai dar tempo de viver nos intervalos?
À noite, num jantar, sento ao lado de um biólogo. Que seres fabulosos os biólogos! Supremos sacerdotes do avesso de todas as coisas! Nunca mais um linguado grelhado será o mesmo, aliás! Ele e eu, vizinhos na teia da vida, junto com as cenouras e os alfaces, somos todos alimentos... Os hindus é que estavam certos… Mas voltando ao avesso, você sabia que, do ponto de vista da natureza, somos apenas um “ovo” super sofisticado com uma única e nobre função: garantir que nossa semente chegue sã e salva ao futuro? Sabia? Pois é exatamente isso: a mais valiosa e a única coisa verdadeiramente imortal em nós são nossos... óvulos!
Levo alguns dias para começar a gostar da ideia de ser um ovo: tem um certo encanto a imagem, não há dúvida!
Mas, e agora? Missão cumprida, o que faz o ovo? Entro esbaforida no consultório (esbaforida é um estado meio que permanente, afinal, você está do avesso!): “Tive uma ideia, doutor, já tenho os filhos que queria, graças a Deus, já fiz meu trabalho de ovo, que tal esvaziarmos tudo? Seios à prova de mamografias, de puríssimo silicone Made in China, esse sim, e uma barriga lisinha, e vazia, que tal, hein, hein??? Nada de exames, nada de preocupações…” Ele ri, não me leva a sério esse homem…
Desisto. E resolvo: Vou levar meu avesso para aprender a dançar tango!
A entrega do Tango, foto de Vana Gwen, Buenos Aires, Fevereiro de 2009
por Adília Belotti
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Sobre o autor
Adília Belotti é jornalista e mãe de quatro filhos e também é colunista do Somos Todos UM. Sou apaixonada por livros, pelas idéias, pelas pessoas, não necessariamente nesta ordem...
Em 2006 lançou seu primeiro livro Toques da Alma. Email: [email protected] Visite o Site do Autor