A cena é clássica: um casal, sentado numa mesa de restaurante, um de cara para o outro, um sem olhar para o outro, apenas comentários casuais entre as garfadas que cavam o tempo, rítmica, metodicamente. “Vamos sair para jantar?”, “OK”, “Onde você quer ir?” “Tanto faz, um lugar com gente”… Aqui, eles estão no tempo dos 50, um pouco antes, um pouco depois, mas já vi casais muito mais jovens protagonizando a mesmíssima cena, o que não deixa de ser ainda mais melancólico, apenas porque a gente gosta de imaginar que os jovens de alguma forma estão protegidos das nossas angústias, pois é, não estão, nem conseguir curtir um jantar a dois é questão de idade, é questão de…interlocução!
Olhe em volta de você, o vento nas folhas, o cachorro latindo no portão, alguém ao telefone, uma música lá longe, uma sirene, um carro que chega, um que parte, talvez passarinhos fazendo algazarra em uma árvore da rua…tudo, todo tempo, se comunica, o universo é som, dizem os hindus, não qualquer som, gratuito, inocente, o som do universo é fala, tem uma intenção, seu alvo é o Outro.
E envolvidos na fala do mundo, a gente acaba achando que é fácil entrar na melodia de todos os seres, mergulhar no compasso do outro. Evidente que estamos enganados, o diálogo está bem longe de ser um dado, é exercício, treino, conquista, sem a qual estamos destinados a ser eternos protagonistas da solidão.
A arte do diálogo, o desafio de descobrir a pergunta que mora dentro dos olhos do outro, viram o filme argentino belíssimo, La pregunta de tus ojos, de Juan José Campanella? Então, é disso que se trata, os olhos do outro nos convocam para o encontro, estão lá, abertos, prontos. A gente olha e não entende. As palavras, os olhos, todo o nosso corpo fala de nós, são expressões disso que chamamos de ‘eu’, discurso que nem sempre o outro ouve e, quando ouve, nem sempre entende…
Todos já ouvimos dizer que a tal cena do jantar acontece porque o outro deixa de ser interessante. É sintoma da doença terminal de todos os relacionamentos, o desinteresse. Nada a fazer. Mas aos 50, um pouco antes, um pouco depois, a gente já viu muitas e muitas vezes pequenas faíscas provocarem grandes incêndios. Arghhh, lugar comum, se escandalizaria a Lélia, e pode bem ser. Mas já sabíamos desde lá de cima que este post teria lugares comuns. Porque é neles que a gente empaca, um de cada lado da mesa, as garfadas cavando o tempo…
Agora, olhe de novo para a mesa, um pouco mais de perto, imagine que do outro lado essa figura familiar de repente se acenda e você consiga ver, por trás dos olhos vazios, uma estranheza, uma pergunta, um convite…
Lembro de um poema que recebi no outlook há muitíssimos anos, chamava-se O Convite. A autora, depois fiquei sabendo, é uma conselheira espiritual e filósofa canadense, uma fiftie com um nome engraçado de xamã: Oriah Mountain Dreamer. Já tem mais de sete livros publicados, esse, especificamente, um best seller, traduzido em 15 línguas.
É esse convite que compartilho com você, como antídoto, quem sabe, contra os silêncios da mesa do restaurante:
Não me interessa o que você faz da vida.
O que eu quero saber é pelo que você anseia e se se atreve a sonhar com os desejos do seu coração.
Não me interessa saber que idade você tem.
Eu quero saber se você se arriscaria a parecer tolo por amor, pelos seus sonhos, pela aventura de estar vivo.
Não me interessa saber que planetas fazem quadratura com a sua lua…
Quero saber se você tocou no âmago da sua própria dor e se as traições da vida enriqueceram você ou se você se fechou e retraiu com medo de sofrer mais.
Quero saber se você pode sentar-se com a dor, a minha e a sua, sem um gesto para escondê-la, atenuá-la ou remediá-la.
Quero saber se você é capaz de viver plenamente a alegria, a minha ou a sua, se pode dançar em total abandono e deixar o êxtase penetrar seu corpo, desde a ponta dos dedos, sem que você seja tentado a nos aconselhar cautela ou a sermos realistas ou sequer lembre das nossas limitações humanas.
Não me interessa se o que você me conta é verdade.
Quero saber se você correria o risco de desapontar alguém para ser verdadeiro consigo mesmo.
Se aguentaria ser acusado de traição sem atraiçoar sua alma.
Se consegue ser infiel e, por isso, digno de confiança.
Quero saber se você consegue ver a Beleza mesmo quando ela não é bela todos os dias.
E se consegue extrair sua própria vida dessa presença.
Quero saber se você consegue viver com o fracasso, o seu e o meu, e ainda assim ficar de pé na margem do lago e gritar para o reflexo prateado da Lua Cheia, ‘sim!’.
Não quero saber onde você mora ou quanto você ganha.
Quero saber se consegue levantar-se depois de uma noite inteira de tristeza e desespero, exausto e ferido, e ainda assim, fazer o que for preciso para alimentar seus filhos.
Não me interessa quem você conhece ou como chegou até aqui.
Quero saber se você ficaria de pé no centro do fogo comigo, sem recuar.
Não me interessa saber onde, o que ou com quem você estudou.
Quero saber o que faz você permanecer inteiro quando todo o resto desaba ao seu redor.
Quero saber se aguenta ficar sozinho consigo mesmo e se ama verdadeiramente sua própria companhia nos momentos de solidão.
Adília Belotti é jornalista e mãe de quatro filhos e também é colunista do Somos Todos UM. Sou apaixonada por livros, pelas idéias, pelas pessoas, não necessariamente nesta ordem...
Em 2006 lançou seu primeiro livro Toques da Alma. Email: [email protected] Visite o Site do Autor