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Tristeza ou depressão?

por Flávio Gikovate em Autoajuda
Atualizado em 01/11/2007 14:25:39


Quem trabalha na área sabe que somos seres bio-psico-sociais. Acontece que cada um tem suas preferências teóricas e assim existe a “turma” do bio, a do psico e a do social. A depressão é um problema para todos os que não sabem operar com as 3 variáveis ao mesmo tempo. Os psiquiatras clínicos (“bio”) acham que quase tudo depende da concentração da serotonina nas sinapses cerebrais: quando ela fica baixa nos sentimos fracos e tristes e passamos a ver a vida pela ótica pessimista que acaba interferindo sobre o estado mental e sobre nossas relações interpessoais. Os psicoterapeutas (“psico”) acham que quase tudo depende de conflitos íntimos derivados de experiências dolorosas na infância e adolescência: inseguranças sexuais, baixa auto-estima dentre tantas condições negativas nos deixam tristes, incompetentes para o amor e para as boas relações sociais, condição na qual também nos sentimos deprimidos. Os sociólogos (“sociais”) acham que quase tudo acontece por força das circunstâncias que nos rodeiam: criamos um meio social mais voltado para a produção e o consumo, e nosso habitat, exigente e cada vez mais difícil, nos leva a um estado depressivo por não estarmos de acordo com todas as expectativas (riqueza, magreza, etc.).

Nunca me filiei a escolas e tenho horror a dogmas. Fui dos primeiros a ver a depressão como um tema complexo: as pessoas estão crescendo mais frágeis por força de uma educação mais permissiva e não estão sendo capazes de lidar com as pressões sociais que só têm crescido. Isso faz com que a incidência de quadros depressivos esteja crescendo efetivamente. Os médicos não sabiam fazer diagnóstico que, de fato, se tornou mais acurado (em parte, é verdade, por pressão da indústria farmacêutica, interessadíssima em vender os novos antidepressivos) e isso também modificou o número de casos de depressão. Qualquer que seja a causa, psicológica ou social, ao longo do tempo, sempre existem repercussões sobre os neurotransmissores cerebrais e o uso de antidepressivos pode ajudar a aliviar a dor mesmo naqueles casos em que os problemas são concretos e objetivos, para os quais a psicoterapia também está indicada. A concomitância de psicoterapia com o uso de antidepressivos é algo que faço desde 1967 e ainda hoje muitos psicanalistas (e alguns psiquiatras clínicos) acham prática indevida. É claro que as depressões podem acontecer por força de perturbações originárias de predisposições orgânicas (familiares ou não) e aí acontece o contrário: a pessoa deprimida enxerga mal a si mesmo e sua realidade.

Minha convicção é a de que se trata de um caminho de mão dupla: perturbações na química cerebral alteram a forma de pensar ao passo que pensamentos equivocados, derivados de conflitos psicológicos íntimos ou de se ter que viver num meio social inóspito, provocam alterações na química do cérebro. Apesar de não parecer, o pensamento é o subproduto misterioso da atividade cerebral. Um subproduto curioso, uma vez que ganha poderes próprios, inclusive para interferir na atividade cerebral. É tudo muito complexo e a questão não cabe numa fórmula simplista. Assim, cada caso é um caso que deve ser estudado detalhadamente. O ramo é mais parecido com a “alta costura” do que com o “prêt-à-porter”.

Sofrimento produtivo e improdutivo

Podemos tentar classificar nosso sofrimento íntimo como normal ou patológico, condição à qual voltarei no próximo artigo. Trata-se de uma avaliação complexa e difícil. Podemos pensar em tristeza com causa objetiva determinante e estados depressivos (tristeza e depressão são, hoje em dia, usados como sinônimo) definidos antes de tudo por alterações na química cerebral. Não se deve subestimar a dificuldade presente neste tipo de divisão, pois estados de alma interferem sobre a química e vice-versa.

Penso que é muito mais útil separar os estados depressivos em sofrimento construtivo e produtivo ou improdutivo e pouco útil - senão completamente inútil. Do ponto de vista prático, esta é a classificação que determina o tipo de interferência do profissional de saúde. O sofrimento produtivo é aquele que deriva da tomada de consciência de erros que cometemos: a autocrítica é sempre muito dolorosa quando, por exemplo, um empresário tem que perceber que sua situação financeira se deteriorou por força de equívocos previsíveis; dói para alguém que perdeu o parceiro sentimental por razões que poderiam ter sido evitadas, dentre tantos outros exemplos. A fase de avaliação do ocorrido é extremamente produtiva e pode levar a importantes mudanças psicológicas, melhorando as condições da vida futura. Numa situação dessas seria quase criminoso fazer uso de algum tipo de medicação que viesse a prejudicar a reflexão em toda sua profundidade.

Nos casos de luto por morte de pessoa querida a situação é diferente, já que não temos que aprender nada acerca de nossas atitudes. Talvez tenhamos muito a aprender sobre condição humana e, é claro, cabe a dor e sofrimento que, diga-se de passagem, nenhum tipo de medicamento é capaz de atenuar muito durante a fase aguda da tristeza.

Acontece que, tanto no caso da autocrítica útil e construtiva quanto no luto necessário para melhor entendermos nossa condição, pode acontecer do estado depressivo se estender para além do útil e conveniente. No caso do empresário que aprendeu com seus erros, é claro que ele terá que sair do estado depressivo e ir atrás de salvar o que restou de seus negócios. Para conseguir fazer isso é preciso que esteja um pouco mais disposto. Isso vale para quase todas as condições depressivas que se prolongam para além do que é produtivo e útil. Aí cabe sim tentarmos ajudar a pessoa a sair do atoleiro depressivo (que, muitas vezes, já se tornou um fato químico) por meio do uso de medicamentos e psicoterapia (que está indicada também na fase de autocrítica).

Nos casos em que a depressão é de origem essencialmente química, todo o sofrimento é inútil e a mente patina em medos e pensamentos obsessivos de caráter negativo dos quais nada de bom se pode extrair. Cabe lançar mão de todos os recursos hoje disponíveis para amenizar este tipo de dor que não leva a nada. O normal e o patológico

Na prática clínica é relativamente fácil sabermos quando estamos diante de uma pessoa portadora de boa tolerância às dores e que tem, em concomitância, uma constituição neurofísiológica privilegiada. Estas criaturas agüentam bem os golpes da vida: lidam com as tristezas inexoráveis (algumas de intensidade dramática, como é o caso do luto e das rupturas amorosas) da melhor forma possível. Vivenciam o sofrimento de uma forma lúcida e tentam extrair dele lições de vida. Saem fortalecidas de tudo o que passam, pois a autoconfiança se beneficia muito da constatação de que são competentes para os piores tombos sem se acovardarem em relação ao futuro. Estas são as pessoas normais.

As que têm uma labilidade maior em sua formação orgânica podem, por nada, acordar, numa madrugada, péssimas. O medo toma conta delas (medos irracionais correspondem a um dos mais importantes sintomas da depressão e estão presentes de forma muito mais marcante nos casos em que o problema é mais endógeno, menos dependente de fatores externos) e elas passam a ver tudo por uma ótica extremamente negra. Padecem, conforme cada caso, de vários dos sintomas que têm sido descritos como parte dos quadros depressivos que devem receber também tratamento farmacológico. Estas são as pessoas que têm a predisposição orgânica para a depressão e, neste aspecto de suas vidas, são anormais.

Entre estes dois extremos estamos quase todos nós: nem sempre tão competentes para lidar com nossas dores, nem sempre tão dóceis e tolerantes quanto gostaríamos, nem sempre em condições de superar sem ajuda estas e outras adversidades da vida. A verdade é que a fronteira entre o que é normal e o que é patológico corresponde a uma faixa muito extensa, de modo que uma tristeza pode se iniciar como algo normal e, com o passar do tempo, ganhar aspectos mais graves (quando o esperado seria sua superação). Pessoas deprimidas por força de razões orgânicas podem decidir se livrar sozinhas de suas dores e tratar de sair do seu estado sem o auxílio de medicamentos ou de psicoterapia. Como já escrevi, penso mesmo que cada caso é um caso.

Faço parte daquele grupo de profissionais que tem uma atitude de profundo respeito pelos pacientes e sua forma de pensar. Minha experiência é basicamente com pessoas normais, termo que uso para incluir também os que estão na faixa fronteiriça e que são a maioria de nós (por isso mesmo normais, ao menos do ponto de vista estatístico).

Considero que necessita tratamento, seja medicamentoso ou psicoterapêutico, aquele que procura, espontaneamente, ajuda. Sei que nos casos claramente patológicos muitas vezes o paciente vem trazido por parentes e isso faz todo o sentido. Nas demais circunstâncias, quem decide se precisa ou não de ajuda (querer receber ajuda não é sinônimo de estar doente de depressão) é o paciente. Ao profissional de saúde cabe prestar o auxílio desejado pelo seu paciente segundo os critérios que sua consciência e formação lhe sugerem.

A propósito do luto

Farei mais algumas considerações a respeito da tristeza derivada da perda por morte. Elas dizem respeito tanto à morte de pai e mãe como de filhos. Antes de mais nada, é preciso dizer que se trata de situações bastante diferentes, uma sendo esperada e outra, a da perda de um filho, dramática e de superação muito difícil. A idéia da morte dos nossos pais, quando já somos adultos e eles estão mais velhos, é algo que, de certa forma, nos perturba até mesmo antes de estarmos cientes de que são portadores de uma doença grave. A ansiedade provocada pela hipótese de que poderemos ser acordados no meio da noite com alguma notícia ruim nos faz sobressaltados quando o telefone toca depois do horário usual; isso pode nos acompanhar por anos a fio.

Quando a morte ocorre experimentamos uma forte dor, a sensação de não termos mais raízes, de estarmos perdidos e soltos no mundo. Isso afora a saudade e a falta que aquela criatura pode fazer em nosso cotidiano (e que depende da natureza do vínculo que persistiu ao longo da vida adulta). Sofremos muito e o luto se caracteriza pela incapacidade que temos de nos divertir. Por um tempo (oficialmente um ano, ou seja, o tempo de todas as datas comemorativas serem passadas sem sua presença) só conseguimos nos ocupar das tarefas cotidianas e daquilo que chamamos de trabalho. Meu ponto de vista é o seguinte: devemos tentar sofrer o mínimo de tempo possível. Ou seja, não acho que quem sofre por mais tempo e vive um luto fechado dá maiores demonstrações de amor por quem se foi.

Acho que pessoas mais maduras emocionalmente (as que lidam bem com frustrações e contrariedades) e as que desenvolveram uma docilidade diante da nossa condição de incerteza e de desamparo acabam funcionando como o “João Bobo”, aquele boneco que cai com facilidade, mas imediatamente depois se põe de pé. Ou seja, não consigo pensar que seja legal, digno, profundo e consistente o sofrimento pelo sofrimento. Ele deve ser tratado como inexorável, como algo a ser vivenciado de forma construtiva (aprender o que der para aprender daquela dor) e pelo menor tempo que conseguirmos. Superar o luto é o objetivo daquele que está sofrendo; não deveria se deixar embalar e muito menos se sentir engrandecido pelo sofrimento.

Sei que tudo isso é muito mais difícil quando se trata da perda de um filho, talvez a maior dor que se possa ter que passar nesta vida (especialmente quando o filho já é adulto e a gente não tão velho para ter uma relação de mais indiferença em relação à morte). A docilidade diante do destino que nos derrubou terá que ser maior ainda, a dor e o luto mais penosos; porém, penso que não adianta nada blasfemar e que o que temos que fazer é mesmo tentar seguir em frente e lançar mão de todas as nossas forças para tentar levantar o quanto antes. Se não conseguirmos fazê-lo sozinhos, devemos lançar mão tanto de grupos de auto-ajuda, como de medicamentos e psicoterapias.



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flavio
Flávio Gikovate é um eterno amigo e colaborador do STUM.
Foi médico psicoterapeuta, pioneiro da terapia sexual no Brasil.
Conheça o Instituto de Psicoterapia de São Paulo.
Faleceu em 13 de outubro de 2016, aos 73 anos em SP.

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