Julgo, logo desisto...
por Rodolfo Fonseca em AutoconhecimentoAtualizado em 29/10/2024 15:58:52
Imagina só: René Descartes, o pai da dúvida, deu o pontapé inicial para o conceito do "Penso, logo existo." Ele quis dizer que, para qualquer coisa existir, era necessário pensar e questionar tudo - até a própria realidade. Descartes queria nos afastar das crenças automáticas, dos comportamentos mecânicos e de qualquer certeza que não tivesse sido devidamente triturada pelo pensamento crítico. Se ele pudesse ver nossas redes sociais hoje, o que diria ao ver a `nova prova existencial´: o "Posto, logo estive lá"?
Sim, para uma parte da humanidade atual, nada grita "Eu existo!" mais alto do que uma selfie em frente a uma cachoeira ou um jantar requintado postado nas redes sociais. É o ato de estar presente digitalmente que, para muitos, valida que de fato estiveram presentes no mundo real. Se Descartes achava que a dúvida era o caminho para a verdade, imagino-o confuso diante da necessidade de estar constantemente online para que os outros não tenham dúvidas sobre nossas experiências. No século 17, era "Penso, logo existo"; agora é "Fotografo, logo fui MESMO."
As regras do método cartesiano, especialmente adaptadas para a "geração stories":
Evidência: Descartes sugeria não aceitar como verdadeiro aquilo que é duvidoso. Hoje, isso significa jamais acreditar que alguém foi a algum lugar especial sem provas digitais. Qual a evidência? A selfie, o post, o filtro certo e os comentários dos amigos. Se não está lá, no feed, não aconteceu. Quer dizer, segundo o método cartesiano das redes, a lógica é clara: cada experiência precisa de registro, ou ela não foi nada mais que uma miragem.
Análise: Aqui, ele falava sobre dividir o problema em partes, para entender melhor. Aplicando ao mundo digital, seria uma análise cuidadosa do que exatamente merece um post. Uma viagem ao café mais descolado da cidade? Sim, claro! Aquela passada rápida no supermercado? Não! Porque, convenhamos, o segredo é postar o suficiente para parecer interessante, mas não tanto a ponto de demonstrar desespero por aprovação. É a análise precisa do que desperta curiosidade (e likes) sem revelar o tédio do dia a dia.
Síntese: Ele também defendia resolver os problemas menores antes dos maiores. Na prática moderna, a "síntese" se traduz em postar o momento exato em que sua vida parece perfeita, não aquele em que você esperou horas na fila, se estressou ou percebeu que o almoço foi frio e caro. Na linha do método cartesiano das redes, edite e filtre os pequenos detalhes para criar o melhor ângulo - mostre o êxtase do momento ideal, sem a bagunça da realidade. Afinal, sem um pouco de manipulação das partes, quem vai perceber a sua grande "existência"?
Enumeração: Por fim, Descartes nos mandaria revisar cada parte do processo, garantindo que tudo foi devidamente questionado. Hoje, isso significa conferir filtros, ângulos, iluminação e, claro, a quantidade de likes. Quem nunca revisou o próprio post e percebeu que algo estava errado, apagou e postou de novo para maximizar a recepção? Pois é. Nas redes, revisão é sinônimo de relevância, e para manter uma "identidade visual" digital, é preciso cuidar até dos detalhes mais supérfluos.
Agora, é claro, fica a pergunta: será que essa versão "moderna" do método cartesiano nos aproxima mais da realidade? Em um mundo onde a imagem vale mais que mil palavras, será que o que estamos vivendo é autêntico? Para Descartes, a verdade residia em um processo doloroso, sim, mas profundo, de busca pelo que é real. Já para o universo das redes, a verdade parece estar em uma validação contínua, instantânea e totalmente superficial.
Talvez seja por isso que Descartes, lá de onde estiver, continua se perguntando: será que postar é mesmo existir?