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Trauma: uma memória inacabada

por Bel Cesar em Autoconhecimento
Atualizado em 08/04/2020 11:35:18


Sonhei com uma situação sem saída: estava presa e isolada numa ilha porque a maré havia subido muito e deixou o píer submerso. O mar estava muito agitado, com ondas enormes. Com muito medo, subi umas rochas até encontrar uma casa abandonada. Não estava só. Havia amigos e desconhecidos. Os dias passaram, a maré desceu. Aos poucos, começamos a acreditar que já era possível ir embora. Sair da situação de isolamento e precariedade.

Algumas vezes, não vemos a saída para uma situação de conflito, mesmo que ela esteja bem à nossa frente. Isso ocorre porque em nossos arquivos de nossa memória algo está faltando, e, inseguros, sentimo-nos bloqueados. Falhamos em alguma experiência anterior semelhante a esta atual. Agora nos sentimos novamente confusos, sem saber como reagir. Falta um aprendizado de sucesso. A saída irá surgir na medida em que desenvolvermos novos recursos, sejam eles internos, como por meio da reflexão e da perseverança, sejam eles externos, pela ajuda externa que pudermos encontrar. Por isso, devemos fazer de tudo para superar nossos medos, pois, senão, iremos reforçar ainda mais a memória de que somos incapazes.

Esse sonho revela o processo de cura de um trauma, quando o cérebro cria gradualmente imagens e sensações de alívio e de confiança em que a vida voltou a fluir. Talvez, logo mais à frente, surja outra maré alta, mas se já aprendemos que marés sobem e descem, não nos sentiremos mais sem saída. Mas, se quando a maré tiver baixa, ainda nos relacionarmos com ela como se estivesse alta, estamos traumatizados: permanecemos em alerta mesmo quando o perigo já passou.

Segundo a concepção do trauma desenvolvida por Peter Levine - criador do método Experiência Somática (SE) -, o trauma é uma marca deixada no sistema nervoso por um evento no qual sentimos que éramos incapazes de lidar. Ou seja, nossas capacidades de sobrevivência ficaram sobrecarregadas.

Por que não basta perceber que o perigo já passou? Porque se os impulsos de defesa e ataque não tiveram tempo ou oportunidade de expressar-se completamente permanecem travados no nosso corpo. Podemos até saber que o perigo passou, mas não sentimos que ele tenha passado. Como diz o ditado, somos gatos escaldados!

Não sentimos que a ameaça acabou porque a resposta fisiológica diante daquele evento traumático permanece em aberto, na espera por uma solução: a energia que não foi descarregada permanece no corpo e o sistema nervoso é impedido de reencontrar seu equilíbrio.

Mas, por que o corpo não acompanha a mente? Porque precisamos completar o ciclo de descarga do corpo para que ele saia do estado de paralisação em que entrou quando se viu sem saída.

Como descarregar? Completando os gestos de fuga ou ataque que ficaram congelados. Tremendo, espirrando, bocejando, arrotando, peidando, chorando, dormindo muito. Como estas respostas físicas instintivas são em nossa cultura consideradas como inadequadas e feias, nós simplesmente as bloqueamos devido aos nossos condicionamentos racionais. Aliás, costumamos até a pedir desculpas quando eles ocorrem. Por incrível que possa parecer, se pudermos descarregar as tensões físicas durante uma discussão de relacionamento, será muito mais provável que chegaremos a um entendimento, pois nosso corpo irá estar em condições de se regular. Regulados, podemos sentir empatia. Mas, enquanto estivermos presos nos mecanismos de ataque, fuga ou congelamento não teremos abertura e disponibilidade afetiva para sentir o que ocorre dentro e fora de nós. Na medida que se recupera a autorregulação o sistema de interação social volta a se religar.

Cabe ressaltar que não basta descarregar a energia paralisada para se recuperar do trauma, é preciso nos autoeducarmos, quer dizer, aprender com a experiência vivida. Trazer para a consciência o que queremos e não mais queremos repetir. Desta forma, quando a maré subir, saberemos o que nos dizer e qual a melhor forma de nos deitarmos e deixarmos a onda passar!



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bel
Bel Cesar é psicóloga, pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano desde 1990. Dedica-se ao tratamento do estresse traumático com os métodos de S.E.® - Somatic Experiencing (Experiência Somática) e de EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento através de Movimentos Oculares). Desde 1991, dedica-se ao acompanhamento daqueles que enfrentam a morte. É também autora dos livros `Viagem Interior ao Tibete´ e `Morrer não se improvisa´, `O livro das Emoções´, `Mania de Sofrer´, `O sutil desequilíbrio do estresse´ em parceria com o psiquiatra Dr. Sergio Klepacz e `O Grande Amor - um objetivo de vida´ em parceria com Lama Michel Rinpoche. Todos editados pela Editora Gaia.
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