Agora que voltei para casa - Capítulo 14
por Angela Li Volsi em EspiritualidadeAtualizado em 13/08/2004 12:43:44
De volta à rotina do dia-a-dia, a decisão irreversível que tomei, com espantosa lucidez, começa a cobrar seu preço. Como se estivesse voltando de uma anestesia, aquele membro imaginário que amputei começa a doer de maneira insuportável.
A catarse em Assisi foi só a primeira tomada de consciência da violência que acabei de cometer sobre mim mesma. Aquele antigo, obscuro medo de uma punição sobrenatural começa a tomar corpo. Sinto-me como a última das criminosas, uma maldita que não merece mais encontrar a paz.
A minha vida precisa continuar aparentando normalidade, mas só Deus sabe o inferno que estou preparando para mim mesma.
As dores que sinto pelo corpo todo são insuportáveis, mas recuso-me a tomar remédios paliativos. Continuo dando todas as aulas, que aliás são minha única fonte de energia.
Todos os dias vou almoçar na casa dos meus pais, sinto-me como uma condenada, nada consegue me alegrar. Percebo cada vez mais o peso de minha solidão, porque nunca pude compartilhar com eles os meus verdadeiros problemas.
Também percebo que aqueles almoços sempre foram um pretexto para que minha mãe pudesse desabafar toda sua decepção e amargura com a vida que leva.
Ela está coberta de razão, mas eu não tenho mais estrutura para deixá-la falar fingindo que está tudo bem, tentando pôr panos quentes, como sempre fiz. Acabo me sentindo, em vez de nutrida, envenenada por aquela comida. Por outro lado, sei que este é o único modo que minha mãe conhece de demonstrar seu afeto.
Meu desejo de expiação me faz reaproximar da igreja católica, mas não tenho coragem de me confessar a um padre, não suportaria palavras de censura ou condenação. Meu pecado é tão grande, que não consigo verbalizá-lo com ninguém. No fundo, meu orgulho não me deixa considerar nenhum ser humano suficientemente preparado para entender minha problemática. Por isso, prefiro me dirigir diretamente a Deus, sem intermediários.
Pela mesma razão, não me sinto mais em condições de continuar meu tratamento homeopático, porque isto significaria revelar ao meu médico o que aconteceu comigo.
Agora sei que era exatamente o que deveria ter feito, mas meus bloqueios naquela época me fizeram ir na direção oposta.
Por sorte, como sempre nos momentos cruciais de minha vida, meus guias espirituais me fizeram encontrar o antídoto de que estava precisando naquele momento.
“Por acaso”, fiquei sabendo da existência de um movimento espiritual de âmbito internacional que, independentemente da religião professada por seus seguidores, funciona como veículo de elevação espiritual.
Esse movimento chama-se SUBUD, foi recebido numa iluminação fulgurante por um indonésio conhecido por Bapak (que, em indonésio, quer dizer “paizinho”).
Agarro-me a esta novidade como a uma tábua de salvação. Antes de receber a chamada “abertura” os postulantes precisam transcorrer um período de três meses tendo encontros semanais com os “ajudantes”, que explicam em que consiste esta prática, e respondem a todas as eventuais perguntas. É muito bom saber que alguém, sem me cobrar nada, se dispõe a compartilhar minhas dúvidas, minhas angústias, com o único intuito de me ajudar a dissolvê-las.
Recebo a “abertura”, que consiste em ser admitida a fazer parte do “latihan” (que quer dizer exercício), que se pratica da seguinte forma:
Na presença de pelo menos uma ajudante, as mulheres (separadas dos homens, que praticam numa sala ao lado) ficam em pé, de olhos fechados, fazem uma entrega mental ao poder de Deus, e deixam que seu corpo receba tudo aquilo que surgir, sem censura e sem julgamento. As manifestações são as mais variadas, dependendo daquilo que cada um precisa receber.
Desde o primeiro momento, experimento com enorme surpresa a ação de uma força interna, misteriosa, que faz mover meu corpo em movimentos involuntários, absolutamente imprevisíveis, e faz com que ele pare imediatamente quando o exercício termina. Ser guiada por essa força interna desconhecida me traz um enorme alívio e um sentimento de gratidão por esta espécie de confirmação de minha natureza divina... Como de costume, mergulho de corpo e alma nessa nova promessa de encontrar finalmente a tão desejada paz interior.
A partir da abertura, posso freqüentar a sede de uma a três vezes por semana, para praticar o latihan. O objetivo desta prática, segundo me foi explicado, e da maneira como entendi, é de purificar cada vez mais todas as camadas do ser, até conseguir ser guiado unicamente pela vontade de Deus.
Dito assim, parece muito simples e bonito, mas é claro que na prática as coisas não se passam com tanta simplicidade. Em primeiro lugar, começo a sentir cada vez mais dores. A explicação que recebo é de que isso faz parte da purificação que o próprio exercício promove.
Como toda a ênfase é dada à capacidade de cada um se entregar a Deus, e como minha tendência é levar tudo ao pé da letra, levo muito a sério as obrigações que pertencer ao movimento comporta. Acabo fazendo parte do comitê da diretoria, assumo várias tarefas, o que aumenta minhas responsabilidades.
Depois de seis meses de meu ingresso, vou participar de um congresso mundial em Toronto, com a presença de Bapak e seus familiares. É uma experiência muito forte sentir que estou fazendo parte desta imensa família espiritual, sem fronteiras de língua, raça, cor ou religião.
Alguns anos mais tarde participo também de outro congresso em Londres, sempre com a presença de Bapak. As demonstrações do poder espiritual interno de cada um que os exercícios coletivos proporcionam são absolutamente exaltantes e nos fazem entrar em contato com camadas de nosso ser insuspeitadas.
Mas, invariavelmente, a volta para minha realidade do dia-a-dia faz doer ainda mais todas as minhas carências.