Agora que voltei para casa - Capítulo 18
por Angela Li Volsi em EspiritualidadeAtualizado em 10/09/2004 12:22:11
Durante os dois primeiros anos do tratamento, nem teria condições de me dar conta de meus sentimentos por ele. Estava machucada demais, inferiorizada demais. Tinha colocado meu terapeuta num pedestal que fazia dele um homem inatingível. Além disso, o fato dele ser casado, ter filhos, o tornava um homem tabu. Contentava-me em admirá-lo cada vez mais, imaginando como devia ser fantástica sua vida fora do consultório.
Durante certas sessões de relaxamento ocorria uma aproximação maior entre o corpo dele e o meu. Fatalmente vinha-me a lembrança de sensações vividas durante meus encontros com M. Descobria até certas semelhanças entre inflexões de voz, de cheiros, o mesmo hábito de fumar que impregnava seus dedos de nicotina. Sentia a mesma perturbação de quando o outro me tocava, e isso naturalmente fazia aumentar a saudade daqueles tempos em que meu corpo era desejado por alguém. Mas ficava estoicamente reprimindo meus impulsos, pois seria impensável para mim qualquer outra atitude.
Ao longo dos anos que o tratamento durou, assim como meus membros retorcidos começaram a se soltar um pouco, comecei a adquirir também uma certa flexibilidade de comportamento (ou teria sido o contrário?). A uma certa altura, senti uma enorme necessidade de procurar aquele meu amor infeliz, que nesse ínterim tinha se casado e tido uma filha, para conseguir verbalizar aquilo que estava há mais de dez anos engasgado em minha garganta.
Quando telefonei, sua reação foi de imediata vontade de me encontrar. Quando entrou em minha sala, vi em seu olhar a decepção de me encontrar tão magra, tão diferente, e com um horrível aparelho nos dentes. Tentou disfarçar e ensaiar uma daquelas brincadeiras dos velhos tempos. Quando eu me esquivei, e comecei a querer falar sério, deu um jeito de desconversar e, mais uma vez, não me deixou dizer o que me queimava por dentro.
A experiência me serviu para perceber o abismo que sempre existira entre nós, e que o desfecho de nossa história só poderia ter sido aquele. Depois disso, algumas outras vezes falei com ele por telefone, mas senti que definitivamente nossos caminhos tinham se separado.
Aos poucos, sem perceber, comecei a transferir para meu terapeuta os sentimentos que antigamente sentia por ele.
O que tornava única minha ligação com meu terapeuta era a sensação de liberdade que sentia por não precisar disfarçar minhas limitações físicas, afinal ele as conhecia e entendia mais do que eu mesma. Quando estava diante dele, sabia que ele era o único que não só não via meus defeitos físicos, mas tinha a visão mais panorâmica de todo o meu ser, nos mínimos detalhes.
Nossas sessões continuavam sendo o momento mais inteligente e estimulante de minha vida. Seria impossível não me sentir atraída pelo único homem que me conhecia por dentro e por fora e que, ainda por cima, devolvia a meu corpo o direito de sentir prazer.
É assim que a antiga sensação de plenitude, toda vez que saía do consultório, começou a se transformar numa gama de sensações as mais variadas, dependendo de meu estado de espírito. O sentimento mais recorrente era o de frustração, porque após o preâmbulo amoroso em que, para mim, tinham se transformado nossas sessões, era lógico que eu precisaria dar vazão àquilo que meus sentidos despertos exigiam.
Acredito que fosse intenção de meu terapeuta provocar exatamente esse despertar, para que eu fosse motivada a procurar um parceiro. Certamente ele não imaginava que eu já o tinha escolhido como parceiro ideal.
O feitiço se virara contra o feiticeiro: justamente porque ele tinha me ensinado a resgatar minha liberdade e minha individualidade, eu não podia mais tolerar ter de calar o desejo que se tornara uma idéia fixa. Eu tinha plena consciência de estar alimentando uma fantasia impossível, e começou assim uma prova de resistência comigo mesma: até quando conseguiria levar adiante esta situação embaraçosa? Também sabia que o meu era o clássico segredo de Polichinelo, pois se ele conseguia ler em mim como num livro aberto, como poderia não enxergar aquilo que eu não fazia questão nenhuma de esconder?
Sei que o peso excessivo que eu estava dando a nossos encontros era o fruto de minha exagerada solidão, mas por outro lado não tinha vontade nenhuma de procurar distrações.
Na verdade, não tinha nem energia, nem tempo disponível para muita coisa.
Enquanto durou minha experiência biocibernética, continuei dando minhas aulas na faculdade, muito orgulhosa de não estar tomando nenhuma medicação, mas agüentando os avanços de minha “doença”.
Não me dava conta das transformações físicas, pois minha prioridade era prestar atenção nas alterações internas que o processo me trazia.
Precisei também me submeter ao ritual acadêmico de preparar uma tese de doutorado, embora não estivesse mais envolvida como antigamente. Era como se tivesse me dividido em duas: uma que estava cada vez mais interessada em autoconhecimento, e outra que não podia deixar de cumprir as exaustivas tarefas que a vida acadêmica exigia.