Agora que voltei para casa - Capítulo 20
por Angela Li Volsi em EspiritualidadeAtualizado em 24/09/2004 12:34:27
De volta ao Brasil, o encontro com meu terapeuta me fez sentir como um ET que reencontra sua nave espacial. Aquele encontro quinzenal era o porto seguro em volta do qual procurava viver como podia. Só o fato de saber que ele existia era suficiente para me manter à tona.
A uma certa altura, o terapeuta começou a introduzir um dado novo e perturbador, que começou a solapar o edifício granítico de minhas crenças religiosas. Através da simbologia complicada e da linguagem cifrada, que estranhamente eu aceitava como se fosse transparente, mas que certamente passava por outro canal que não o da compreensão lógica, pela primeira vez eu ouvia falar de outra interpretação dos mistérios religiosos. As primeiras vezes ficara horrorizada com o som herético daquilo tudo. Aos poucos, aquilo que me pareciam "blagues" ditas para me escandalizar, começou a fazer um certo sentido.
Eu ficava só ouvindo sem tomar partido. Sabia que não podia levar tudo ao pé da letra. Sabia também que todos os elementos da nova charada mais dia, menos dia, acabariam por se encaixar. Havia sempre vários níveis de comunicação, durante nossas sessões.
O mais urgente para mim era conseguir reverter os estragos que minha “doença” tinha causado. Ao mesmo tempo, tinha consciência de que tudo o que estava recebendo era uma iniciação que faria sentido no tempo certo.
Por enquanto, minha necessidade de perdão me fazia manter o hábito de freqüentar a igreja católica. Sentia-me umbilicalmente ligada a meu diálogo com Cristo, do qual não abriria mão por nada desse mundo. Era a única âncora que me restava das ruínas em que se transformara tudo aquilo que tinha aprendido até aí.
Meus apelos, minhas orações, meus sacrifícios voluntários e involuntários eram todos voltados para a necessidade que tinha de me sentir abençoada e protegida.
Naquela época, falava-se cada vez mais das aparições que Nossa Senhora vinha fazendo numa perdida aldeia da Croácia, Medjugorjie. Tinham sido publicados vários livros relatando as aparições e eu ficara extremamente comovida com o relato ingênuo e pungente dos pequenos videntes, todos jovens da mais humilde procedência.
É claro que dentro de mim sempre acalentara a esperança de que um dia fosse digna de presenciar algum milagre. Aliás, numa de minhas passagens por Paris eu tivera um encontro na igreja de Saint Nicolas Chardonnet (onde resistiam os padres seguidores de Monsenhor Lefebvre, o grande contestador das ordens do Papa) com uma estranha senhora que, entre outras coisas, me predissera que um dia eu iria assistir a um milagre.
Isso, mais do que outras coisas do gênero que costumam acontecer comigo, tinha me marcado particularmente. Estava, mais do que nunca, necessitando de um sinal sobrenatural que aplacasse essa minha necessidade quase patológica de respostas divinas. Se tivesse uma manifestação clara de cura milagrosa, seria a prova mais irrefutável de que Deus tinha me perdoado. Toda a minha luta, toda minha obstinação eram na verdade uma tentativa de obrigar Deus a me declarar seu amor.
Na viagem à Europa que fiz dois anos após minha estréia nos congressos internacionais, deu-se a oportunidade de fazer a tão almejada viagem a Medjugorjie
Tudo se passou como num rito iniciático. Estranhamente, fiquei sozinha em Roma, em casa de minha amiga que estava viajando de férias. Fiquei completamente sozinha, com a única preocupação de conseguir a viagem. A tarefa não era das mais simples, por estarmos em pleno alto verão. Foram muitas idas e vindas, até que consegui uma passagem numa cabine de um navio que ia de Bari para Dubrovnik. Consegui também uma reserva num daqueles quartos de pensões improvisadas em que os moradores estavam rapidamente transformando suas casas.
A viagem de Dubrovnik até Medjugorjie, num ônibus de peregrinos italianos, foi a melhor metáfora de uma verdadeira subida ao céu. O dia estava esplêndido, a vegetação incrivelmente luxuriante, e quanto mais o ônibus subia, mais bonito e mais verde ia ficando o mar nas nossas costas. A sensação de ante-sala do paraíso chegou ao auge quando o padre e todos os fiéis começaram a entoar hinos de louvor à Virgem em italiano e em latim, que eu também podia acompanhar, pois eram os mesmos da minha infância. Não poderia me sentir mais abençoada.
Toda Medjugorjie se desenrola ao longo de uma única rua, onde as pensões, os restaurantes, as lojas de souvenirs foram surgindo como cogumelos à medida que os turistas se multiplicavam. No meio, o enorme adro da igreja que impressiona pelo tamanho, absolutamente desproporcionai à cidade, como se sua construção tivesse sido orientada por ordem divina.
A rua inteirinha coalhada de ônibus de excursão de todas as procedências.
As missas são celebradas em todas as línguas, e cada uma tem seu horário específico. Embora imensa, a igreja não comporta a enorme quantidade de peregrinos, daí ter sido construído, na parte de trás, um enorme altar ao ar livre, diante do qual se abrem em leque dezenas de fileiras de bancos de madeira que recebem os fiéis das grandes missas ecumênicas do final da tarde. No altar cabem dezenas de padres, de todas as raças e de todas as línguas, que se alternam ao microfone na hora do Evangelho, que é lido em vários idiomas. A função é explicada e coordenada por um frade franciscano croata, que além de se dirigir aos fiéis impecavelmente em várias línguas, impressiona pelo fervor religioso que dele emana e pela energia com que consegue coordenar todos aqueles peregrinos vindo dos quatro cantos do mundo.
A missa é celebrada no horário em que todos sabem que os videntes se encontram numa das saletas da grande construção, em colóquio com Nossa Senhora. As aparições costumam se dar todos os dias no mesmo horário. Quando esta hora se aproxima, é impressionante o silêncio, o respeito, a imensa fé que paira no ar. Poderia se cortar com faca a emoção que toma conta de todos.
O frade franciscano recita o pai-nosso em croata, ao qual os fiéis respondem em latim, com uma paixão nunca vista. É impossível não ficar contagiados com o clima místico que toma conta do ambiente. Pode-se ficar horas a fio rezando, sem sentir o menor cansaço. Quando o frade convida os fiéis a jejuarem às quartas e às sextas-feiras e a voltarem para rezar às nove da noite, isso soa como a coisa mais natural do mundo, e é com alegria que se espera a hora de voltar a rezar, a despeito da brusca queda de temperatura. O ar de santidade que se respira durante as funções é um alimento mais do que suficiente para o espírito e para o corpo também. O mais simples pedaço de pão passa a ter o sabor de um manjar dos deuses.