Agora que voltei para casa - Capítulo 22
por Angela Li Volsi em EspiritualidadeAtualizado em 08/10/2004 12:20:41
Quando chego em Roma, por vários dias sinto-me como se estivesse ainda em Medjugorjie. Só tenho vontade de rezar o terço e só saio para visitar igrejas que ainda não conheço. Estranhamente, em todas as igrejas onde chego, imediatamente começa a ser celebrada uma missa, inclusive na basílica de São Pedro. Choro muito, porque me sinto ainda toda banhada por uma forte comoção, uma enorme piedade por tudo o que está acontecendo no mundo. Ainda bem que agora só me resta voltar ao Brasil, não teria condições de continuar fazendo turismo.
Na volta ao Brasil, sinto necessidade de entrar em contato com outras pessoas que passaram pela mesma experiência. Encontro algumas, e comentamos como é difícil, longe e sozinhos, continuar alimentando todos os hábitos que em Medjugorjie era tão fácil cultivar
Até aquela época, minha principal âncora continuavam sendo as sessões com meu terapeuta, embora eu não conseguisse deixar aflorar minhas emoções. Apesar de tudo, indiscutivelmente a seqüência das sessões fazia com que muitas de minhas couraças amolecessem. Esse trabalho, associado a minhas últimas experiências místicas, fez nascer em mim um desejo imenso de perdoar, de parar de julgar e, principalmente, de acabar com certos preconceitos meus.
Peguei o telefone para chamar meu antigo amor e lhe dizer que nunca deixara de amá-lo, apesar de tudo o que tinha acontecido. Do outro lado atendeu a voz de um estranho. Quando perguntei por ele, a voz me respondeu que ele tinha falecido. Meus ouvidos não registraram a resposta, e voltei a perguntar. Quando as palavras soaram as mesmas, só consegui balbuciar alguma pergunta sobre a época e a maneira. Fazia alguns meses e fora um derrame fulminante. Quando desliguei, não sabia ainda se podia acreditar em tamanho absurdo. Não conseguia chorar, nem gritar, nem tomar atitude alguma. As palavras do estranho não paravam de ecoar em minha cabeça, mas na verdade ainda não tinha conseguido assimilá-las.
Na sessão seguinte, comecei a contar a meu terapeuta o ocorrido. Quando ele percebeu minha emoção, pegou-me gentilmente pela mão, como se faz com uma criança, e ouviu em silêncio o que eu tinha para contar, segurando o tempo todo minha mão. Nunca mais esqueci aquele gesto silencioso, mais eloqüente do que mil palavras.
Estava assustada porque era a primeira vez em que a morte, figura tão familiar nos meus pensamentos, me tirava uma pessoa tão importante para minha vida. Tinha medo de cair num desespero atroz, insuportável diante de um fato tão irreversível.
Para minha surpresa, a sensação que tomou conta de mim foi de libertação. É como se um peso enorme tivesse caído dos meus ombros. Agora não precisava mais carregar aquele peso morto que nossa incomunicabilidade representava. Me dei conta de que nosso relacionamento mal resolvido pairava sobre mim como uma nuvem negra, que me angustiava pela sensação constante de fracasso. Era como se agora eu pudesse me sentir novamente no direito de considerá-lo meu, de me dirigir a ele sem intermediários. A morte nivelava tudo.
A reação mais imediata foi de valorizar tudo aquilo que admirava nele, e que não conseguia incorporar em minha vida. Parecia-me que sua morte tinha a função de deixar para mim a seguinte mensagem: viva nesta terra tudo o que lhe é dado viver enquanto é tempo, e não se prenda a regras castradoras. No fundo, o fato dele ter morrido no auge da potência e da ação fez com que sua imagem se fixasse para sempre como a de um homem que sempre seguira a voz de seu coração.
Isso era o principal ponto em comum entre ele e meu terapeuta. Apareceu ainda mais gritante a discrepância entre sua filosofia de vida e a de outros amigos que seguiam estritamente os preceitos da igreja católica, mas eram incapazes de um gesto de verdadeira compaixão, e que eu tinha deixado que influenciassem minha vida mais do que eles mereciam. De repente saltou-me aos olhos toda a hipocrisia, a limitação que as regras estritas do catolicismo nos impunham, e senti uma repulsa incontrolável por tudo aquilo.
Todas as lembranças de meu amor morto se acotovelavam em meu pensamento, e sua semelhança com meu terapeuta só fazia se acentuar cada vez mais. Valorizava o senso prático, a habilidade que os dois tinham em lidar com as pessoas e as coisas da vida, em contraposição a um crescente desprezo pelo excesso de erudição e pelo cerebralismo acadêmico.
Foi naquela época que me vi quase impelida a me aposentar de minhas aulas. Certamente o que eu estava sentindo após a morte de meu amor contribuiu para acelerar minha decisão.
Alguma coisa tinha definitivamente mudado dentro de mim, não conseguia mais ver sentido numa prática profissional tão afastada da realidade que me cercava. O mundo estava mudando de maneira vertiginosa, não havia mais espaço para sofisticadas discussões acadêmicas que só interessavam a um punhado de pessoas.
Minha primeira reação foi de esquecer que um dia eu tinha pertencido ao corpo docente de uma universidade. Finalmente reintegrara meu verdadeiro espaço, pois nunca como naquele momento eu tivera a consciência de quanto minha vitalidade tinha ficado aprisionada e atrofiada.
Tinha uma necessidade incontrolável de me mexer, de andar, nadar, reaprender a dançar. Meu corpo pedia isso, mas era algo muito mais profundo que estava pedindo para sair do calabouço. Dentro de mim, o fio de minhas experiências, de meus aprendizados, não tinha sofrido nenhuma ruptura. Eu continuava me sentindo inteira, eu mesma, com todos os anseios e as expectativas ainda não resolvidas, e, portanto com todos meus sonhos adolescentes ainda intactos. Continuava agindo como se minha aparência externa também continuasse sendo a mesma. É verdade que há muito tempo já percebera os olhares de quem me via passando na rua, principalmente as crianças, que em sua inocência conseguem ser muito mais cruéis por não saberem esconder a curiosidade.
Estava ficando cada vez mais claro para mim que o desesperado refugiar-se na religião, poderia ser apenas um cômodo álibi para deixar de assumir as próprias responsabilidades na terra como seres humanos de carne e osso. Não podia me resignar à visão esquálida que meus amigos beatos me apontavam, com seu fanatismo. Achava que não era isto que Cristo queria de nós. Se a palavra que ele mais empregava foi “amor”, onde estava o exemplo que seus seguidores deveriam dar? Escondendo-se cada um numa cela solitária, penitenciando-se por pecados inexistentes? O maior pecado não seria justamente essa recusa de viver?
Comecei a sentir repulsa por todas aquelas práticas que visavam principalmente mortificar a carne, e começou a me dar um certo desespero diante da corrida inexorável do tempo.