Agora que voltei para casa - Capítulo 6
por Angela Li Volsi em EspiritualidadeAtualizado em 18/06/2004 11:46:41
Agora estou em Paris, num hotel muito modesto, embora se encontre num dos bairros mais nobres da cidade. É que a proprietária é a irmã de uma senhora húngara, minha colega de trabalho. O grupo de brasileiros que veio comigo está hospedado num hotel do Quartier Latin, perto da Alliance Française, onde iremos freqüentar o curso que nos foi oferecido.
É nosso primeiro sábado parisiense, lá fora está nevando. Eu não resisto à tentação desse reencontro com a neve, depois de tantos anos de clima tropical, e saio para andar, sozinha.
A rua é muito iluminada e movimentada. A uma certa altura, vejo um homem alto, negro, vestindo uma capa de chuva, que se aproxima sorrindo e me diz que simplesmente não conseguiria continuar andando sozinho, precisa falar com alguém. Apresenta-se como um pesquisador da Unesco e começa a me explicar o que está fazendo em Paris. Vem de um país da África e está pesquisando no campo da linguagem. Conta-me que foi ele a sistematizar a língua escrita de seu país, que antes era só falada. Observo que uma das mangas de sua capa de chuva pende vazia do lado do corpo. Explica-me que teve um acidente horrível e que seu braço teve de ser amputado.
Tudo o que ele diz parece jorrar de uma fonte esfuziante e multicolorida, a energia que emana dele ilumina tudo à sua volta, afasta qualquer temor, qualquer dúvida a seu respeito.
Num dado momento, pergunta-me diretamente se não quero lhe fazer companhia. Ao perceber meu espanto, diz que não preciso fazer nada que não tenha vontade de fazer, que só o fato de ter deixado que ele falasse comigo iluminou sua noite. Deixa-me seu cartão de visita, e eu me afasto, sem ter dito nada a meu respeito nem deixado meu endereço.
Volto para o meu hotel, e é aí que começa o confronto comigo mesma. Estou atordoada por tudo o que acabou de acontecer. Este encontro tocou no ponto nevrálgico que vem me atormentando de uns tempos para cá. Quem sou eu, o que estou fazendo aqui, o que estou buscando? Desde minha chegada sinto-me como uma impostora, alguém que teve a sorte de receber um presente valioso e não sabe o que fazer com ele. Finge estar muito ocupada entretendo-se com coisas fúteis e, quando não tem o que fazer, a única coisa que lhe ocorre é pegar um livro e ler o que os outros têm a dizer. Já estou numa idade em que deveria ter definido meus projetos de vida, deveria ter tido a coragem de viver uma experiência amorosa por completo, esquecendo as desculpas de sempre.
O encontro com este homem me coloca frente a frente com todas minhas questões existenciais. Porque não tive a coragem de aceitar seu convite? Só porque ele é negro e falta-lhe um braço? Passo a noite inteira revirando-me na cama sem conseguir pegar no sono nem chegar à conclusão nenhuma.
De manhã, como se uma ordem interna inquestionável me guiasse, visto-me e dirijo-me para o endereço que está no cartão que ficou o tempo todo diante de mim.
É uma cidade universitária de periferia, habitada principalmente por africanos. Quando chego ao seu quarto, A. está ainda na cama, me recebe surpreso, e quando, acanhada, confesso-lhe que aquela é minha primeira vez, olha-me incrédulo e diz: “Você não tem vergonha?”
O que acontece depois é muito rápido, é como uma cena de filme em que predominam as cores vermelha e negra.
Quando chega a hora de levantar para almoçar, ele veste seu “boubou” africano e me leva até um refeitório onde, sentado ao meu lado, começa a receber os cumprimentos de todos seus amigos, que vêm saudá-lo como num ritual. Eu não sei se sinto orgulho por ter tido a coragem de estar naquela situação, ou vergonha por estar sendo alvo de tanta curiosidade. É tudo muito irreal para que eu possa entender o que estou sentindo. É como se o filme continuasse, eu estou me vendo enquanto vivo aquelas cenas.
Depois do almoço, voltamos para o quarto e consigo que ele respeite minha necessidade de descansar. Conta-me todos os desafios que conseguiu superar para chegar na posição que ocupa, é inegável que possui uma garra e um talento fora do comum. Também menciona inúmeras façanhas amorosas, documentadas num álbum de fotografias que me mostra. A maioria das mulheres é branca, aliás, loira.
Saímos para andar, ele quer a todo custo que eu tire uma foto que fica com ele. Não estou gostando do rumo que a conversa está tomando. Explica-me que está tendo um problema que não entendo muito bem, e afinal pergunta-me se poderia emprestar-lhe uma quantia de dinheiro. Sinto-me como se tivesse caído numa armadilha, não vejo a hora de me desvencilhar. Prometo procurá-lo assim que puder e, rapidamente, sem deixar meu endereço, entro na primeira estação de metrô e volto para meu hotel.
Só se passou menos de um dia desde que encontrei este homem, mas minha vida está completamente de cabeça para baixo.
O dia seguinte, tenho a impressão de que todos estão reparando em mim. Não é só impressão, há realmente um sujeito, no restaurante universitário, que não pára de olhar em minha direção. Aproxima-se, puxa conversa, é um italiano. Tem um discurso político que me atrai e me cansa ao mesmo tempo. Mas também tem uma beleza e um charme irresistíveis, e acabo convidando-o para meu hotel. É como se o feitiço de ontem continuasse seu efeito sobre mim.
Desta vez sinto uma real atração por esse homem, que evidentemente não tem o menor interesse pela minha pessoa. Sua idéia fixa é exercitar comigo todas as teorias marxistas que estão na moda Não perde ocasião para demonstrar seu desprezo pelos burgueses que, segundo ele, eu represento. Todas suas atitudes, desde a maneira de se vestir e se comportar até o fôlego incansável para argumentar, são as de um militante que recebeu uma lavagem cerebral e quer repassá-la a todas as eventuais vítimas.
É tensão demais para mim. Não é essa a hora mais propícia para ser doutrinada. Vou à agência de viagens e refugio-me no calor familiar da volta à minha cidade natal, apesar dos parentes.