Agora que voltei para casa - Capítulo 9
por Angela Li Volsi em EspiritualidadeAtualizado em 09/07/2004 12:07:55
Meu eventual leitor, minha provável leitora, você deve estar se perguntando até quando pretendo abusar de sua paciência, desfiando o meu monótono rosário de previsíveis erros, que nada tem de extraordinário.
Lembra daquela menininha de seis anos do primeiro capítulo? Estava levando tão a sério esta tarefa de relatar para você todo o trajeto que me levou até aqui, que acabei incorporando seus padrões.
Estava me sentindo como o atleta esforçado (e inexperiente) tão concentrado em seu esforço que acaba esquecendo de respirar. Bem que meu corpo está reclamando sem parar e eu já deveria ter aprendido a interpretar sua linguagem!
Esta sensação de sufocamento que estava sentindo fez cair uma enorme ficha a respeito de um dos meus padrões de comportamento, o mais arraigado. A menininha pensa assim: “Se alguém me confiou uma tarefa, é porque eu devo ser capaz de cumpri-la até o fim, custe o que custar”. E lá vai ela, apertando os dentes, agüentando firme, em seu caminho solitário. Não passa pela sua cabeça que pode parar no meio do caminho, trocar figurinhas com alguém, compartilhar dúvidas e angústias, eventualmente corrigir a rota e recomeçar a jornada com energias renovadas.
Felizmente, a Angela que está falando com você já aprendeu a lição, depois de tanto apanhar. Só que os antigos padrões são os mais difíceis de extirpar. Afinal, ainda sou uma aprendiz de mim mesma.
Se faço questão de contar para você os mínimos detalhes de certas passagens, não é para justificar minhas atitudes, ao contrário, é para enfatizar minha cegueira. Minha proposta é a de ser o mais fiel possível na reprodução daquilo que se passou realmente a cada momento, na minha visão daquela época, para que você mesmo tire as próprias conclusões. Se você chegou até aqui, peço-lhe mais um pouco de paciência para me acompanhar nesta viagem. Preciso de você para descer comigo até o fundo do poço de minha cegueira.
Vou retomar minha história no ponto em que paramos, lembra?
Agora estou casada com I.
Já na “viagem de núpcias” que nos leva a uma distante cidade do interior, onde ele tem parentes, começam as discrepâncias. Agora que estamos unidos pelos sagrados laços do matrimônio, o feitiço começa a perder seus efeitos. A intimidade que deveria ser o cimento indestrutível de nossa união revela-se um fracasso.
As diferenças de hábitos, de gostos, de cultura que antes eram um diferencial exótico, agora se tornam um incômodo entrave à nossa convivência. Já sabia que não seria fácil conciliar as mentalidades de pessoas com histórias tão diferentes como as nossas, aliás me casei fascinada por tudo aquilo que poderia aprender com ele. No começo, achei divertidas certas descobertas que a convivência ia revelando. Só que, aos poucos, começo a ter sérias dúvidas a respeito da verdadeira personalidade deste desconhecido.
O que me preocupa é que estou vendo ruir um a um, como um castelo de cartas, os pilares que, pelo menos para mim, representavam as bases indestrutíveis de nossa união.
Todo o desprezo que ele demonstrava pelos hábitos burgueses, e que eu admirava como sinal de desprendimento, cedem o lugar a uma súbita valorização das coisas materiais.
O arrojo com que enfrentava pessoas e situações, com o passar do tempo mostra sua verdadeira cara: não passa de pura grosseria.
O suposto desejo de tranqüilidade para poder escrever (nunca mais li nada escrito por ele) revela-se simplesmente um traço de indolência baiana.
Por sorte, uma das coisas de que ninguém me faria abrir mão é o meu trabalho. Com o casamento, consegui ser transferida do Vocacional de Americana para o Vocacional de São Paulo. Ele, que quando conheci estava desempregado, conseguiu ser admitido na redação de uma importante revista.
Usufruímos dos privilégios concedidos a jornalistas, como por exemplo o acesso a casas de espetáculos e à residência de artistas famosos que ele vai entrevistar. Nossa vida parece uma gangorra descontrolada: momentos de exaltação sucedem-se a momentos de angústia, provocados pelo seu temperamento desconfiado, ciumento e violento.
Surpreende-me com o talento e a coragem de se apresentar em programas de televisão, como jurado ou como entrevistador. Sua verve e a capacidade de driblar as situações mais insólitas são espantosas. Ao mesmo tempo, assusta-me sua total ignorância das normas mais elementares de convívio social.
Com a força de um trator que passa por cima de qualquer dificuldade, consegue resolver problemas dificílimos de pessoas que o procuram pedindo ajuda. Ao mesmo tempo, continua me afastando da minha família e dos meus amigos, quer ser meu único dono.
Sou obrigada a deixar de freqüentar meu grupo de estudos esotéricos, por causa de seu ciúme doentio e pelo medo de que provoque incidentes desagradáveis. Assim mesmo, sua desconfiança e curiosidade o levam a entrar em contato com meu guru, e a conseguir ser convidado a compartilhar com ele um debate na televisão.
Quando nos conhecemos, e durante os seis meses de namoro, o que mais me atraiu nele foi uma postura de rompimento com toda e qualquer convenção. A segurança com que defendia suas idéias fez alimentar minha ilusão de ter finalmente encontrado o guia que sempre estivera esperando.
Todas suas atitudes e a exigência de total sinceridade de minha parte me fizeram crer que poderia esperar o mesmo dele. Agora, a constatação de que quase nada do que ele me disse a seu respeito é verdade, retira o chão debaixo de meus pés. Como se isso nunca tivesse passado pela minha cabeça, aprendo horrorizada que existem pessoas que mentem e acreditam nas próprias mentiras.
O emprego na revista famosa era verdade, só que agora já não existe mais. Certamente seu temperamento não conseguiu resistir a uma rotina séria de trabalho.
Agora trabalha num jornal de segunda categoria, as regalias não são mais as mesmas.
Um dia em que volto inesperadamente para casa, o encontro ainda na cama. Justifica-se com desculpas esfarrapadas.
Minha antiga confiança cega transforma-se na pior das incertezas. Novamente, não posso compartilhar minhas angústias com ninguém, porque reneguei tudo e todos por causa dele.Às escondidas, vou falar com meu ex-guru, e o que ele me diz confirma todos meus receios. Ele promete me ajudar, mas deixa claro que preciso tomar muito cuidado.
O que me impede de enfrentar abertamente a situação é a certeza de que não posso revelar claramente meus sentimentos, não posso manifestar todas as dúvidas sobre nosso relacionamento. Ele não tem estrutura psicológica para aceitar as evidências. Quando tentei timidamente abordar o assunto fiquei assustada com as reações violentas e irracionais que isso provocou.
Sinto-me encurralada, toda minha alegria de viver é uma pálida recordação.
Não posso me abrir com meus pais, pois só agora consigo avaliar tudo o que os obriguei a aceitar, e também não quero envolvê-los em episódios de violência. Já tive algumas amostras e não pretendo repetir a dose.
A única coisa que sei fazer é fechar-me num mutismo que rapidamente se revela insustentável. Gostaria que ele percebesse que não há mais clima para manter a farsa em que se transformou nosso casamento.
Isso dura exatamente três anos.
Como ele não dá mostras de tomar nenhuma iniciativa, apelo para um extremo recurso: comunico-lhe que aceitei uma bolsa de aperfeiçoamento na França, vou ficar fora dois meses. Não é fácil convencê-lo a me deixar ir, mas consigo fazê-lo enxergar que essa é a única chance de reaproximação, precisamos de um tempo e de um espaço entre nós para reavaliar nossa relação.
Bem ou mal, consegui marcar minha passagem. Uma semana antes da viagem, num domingo, ele quer me levar, no carro que acabei de comprar e que ele mal sabe dirigir, a um passeio fora de São Paulo.
Na estrada, ainda consigo alertá-lo de que um outro carro vem vindo a toda velocidade em nossa direção. Tarde demais. No choque sou jogada fora do carro, que capota duas vezes. Não perco a consciência, e também não sinto dor nenhuma.
No hospital onde sou socorrida constata-se, porém, a fratura de duas vértebras cervicais. Também bati os dentes da frente, que ficam abalados.
Quando me recupero do susto e verifico que não houve outras lesões mais graves, me dou por muito feliz com o saldo do acidente: preciso somente usar uma proteção cervical. O médico me diz que não há nada mais a fazer do que esperar que as vértebras voltem a se soldar.
Com minha minerva no pescoço, embarco assim mesmo em direção do velho mundo e da libertação de meu pesadelo.