Agora que voltei para casa - Capítulo 25
por Angela Li Volsi em EspiritualidadeAtualizado em 29/10/2004 18:49:49
Enquanto isso, chegara o momento de participar novamente do grupo de mulheres, já que aquela fantástica mestra tinha sido fiel à promessa de voltar. Engraçado, já não sentia mais aquela ansiedade insuportável, as experiências daquele ano tinham servido pelo menos para devolver às coisas suas reais proporções. Tinha muita curiosidade de ver o que aconteceria dessa vez, exatamente para aquilatar o alcance das mudanças dentro de mim.
A admiração por ela, pelo que ela dizia e fazia, continuava intacta. Ao mesmo tempo, era como se ela tivesse descido de um pedestal, via-a como uma excelente profissional, mas como um ser humano com todas suas contradições. Como eu estava muito mais “normal”, sem aquele comovente ar de adoração que tanto a encantara, notei que desta vez havia outras “favoritas”. Em meu íntimo, em vez de me sentir diminuída, congratulei-me comigo mesma, pois isso era um inegável sinal de crescimento.
Também pude olhar com maior isenção às outras companheiras de grupo, e simplesmente ver a todas nós como tripulantes de um mesmo barco, cada uma com sua carga mais ou menos pesada.
A despedida foi mais ou menos tranqüila, e a vontade de ir para a Índia cada vez mais morna. O que restava imutável era o fato de que eu só me sentia bem, livre e confiante, no meio de pessoas como aquelas, interessadas em ir cada vez mais fundo no caminho do autoconhecimento. As obrigações da vida cotidiana, as pressões desumanas que a vida numa grande metrópole acarreta ficavam cada vez mais intoleráveis.
Comecei a freqüentar o espaço que um grupo de sannyasins mantinha, e que promovia a vinda de especialistas do mundo inteiro nas inúmeras modalidades de trabalhos holísticos que Osho tinha transmitido a seus discípulos.
É assim que fiquei muito interessada num curso que estava sendo anunciado há muito tempo, e que prometia grandes transformações interiores. O que me deixava um pouco preocupada era o título do curso: “A arte de morrer”. Quem o coordenaria era uma senhora extremamente simpática, sannyasin, que eu conhecera durante o primeiro grupo das mulheres. Tratava-se de uma alemã que há mais de dez anos tinha enveredado pelo caminho da terapia espiritual, mudara-se para a Índia e se especializara num grande número de técnicas orientais e ocidentais de psicoterapia.
O que me encantava era o ar extremamente doce e solidário que emanava dela, além de uma grande simplicidade. Um pouco apreensiva, pedi para ter um colóquio com ela antes de me inscrever no grupo. Francamente não estava disposta a me meter mais uma vez numa experiência sem ter a menor idéia do que ela me proporcionaria.
Saí de lá muito aliviada, porque o que ouvi me convencera de que o título também poderia ser “A arte de viver”. E era dessa mesma que eu estava precisando.
No dia aprazado, estamos todos reunidos num mesmo ponto de partida, para que os carros sigam em caravana. Conheço algumas das pessoas que participarão do grupo. As outras, já sei que a partir de amanhã será como se fossem velhas conhecidas. Noto uma senhora muito bonita, muito fina, lembra vagamente a atriz Deborah Kerr, e manca de uma perna de maneira muito mais acentuada do que a minha. Seu rosto bonito está anuviado por uma expressão muito séria, quase hostil, que me dá uma pena muito grande. Qual será sua história?
Chegamos neste lugar paradisíaco, longe do burburinho da cidade, perfeito cenário para as cerimônias que nos esperam. Tudo aqui foi planejado para garantir a máxima comunhão com a natureza e o respeito à privacidade. Imediatamente se estabelece entre nós aquela cumplicidade de quem, chegado a este ponto, não precisa mais de muitos salamaleques. No fundo, todos nós estamos morrendo de medo do que vai acontecer.
Eu continuo com um pé atrás, e prometo a mim mesma que esta será a última vez em que me meto, com minhas próprias mãos, em situações idiotas. Mas, aos poucos, minha desconfiança vai se dissolvendo.
Nossa “facilitadora”, auxiliada por um rapaz que já passou pela experiência, nos surpreende a cada momento. As situações que nos propõe, absolutamente inesperadas, ao mesmo tempo que visam nos familiarizar com a idéia de que vamos morrer ao final de nossos últimos sete dias, conseguem atenuar o horror desta perspectiva nos proporcionando um ambiente aconchegante e amistoso. Há alguma coisa de mórbido no ar, pois às tímidas perguntas dos mais jovens, que buscam a confirmação de que tudo não passa de uma brincadeira, se contrapõe a veemência com que nossa instrutora repete: “Então nós não fizemos um bom trabalho. Vocês vão morrer mesmo daqui a sete dias”.
Etapa após etapa, somos confrontados com todos os detalhes que devem ocupar a cabeça de um 'morituro'. As situações armadas nos levam a completar todos os passos de uma cerimônia de adeus à vida. O que me impressiona é a força do círculo mágico que se cria em cada instalação. A situação é forjada, mas as reações, as lágrimas, o desespero, a dor, a saudade, o arrependimento, a raiva são autênticos. Vejo ao meu redor pessoas chorando sem parar horas a fio, outras que se revoltam e gritam como se estivessem sendo esquartejadas.
Como contraponto, readquirimos a capacidade de saborear o milagre da vida, da beleza, da solidariedade humana, do espetáculo suntuoso com que a natureza nos brinda em cada uma de suas fases.
Pela primeira vez, sinto-me realmente confrontada com a minha condição, com a minha verdade. Não há como escamotear questões como esta: “Se eu morresse amanhã, de que me arrependeria”? Aí, inapelavelmente, você é obrigado, rapidinho, a fazer vir à tona os seus verdadeiros valores, seus verdadeiros desejos. Não há tempo para hesitações, para erros. Outra tarefa embaraçosa: escreva uma carta de despedida para seu pai, para sua mãe, para a pessoa que você mais ama. E aí surge a grande questão: quem eu amo? De quem gostaria de me despedir?