Como conquistar a paz interna
por Bel Cesar em EspiritualidadeAtualizado em 17/12/2004 11:11:34
Em 1988, quando Lama Gangchen Rinpoche esteve no Brasil pela segunda vez, ele nos disse: “Para a conquista da paz interna, o primeiro passo é nos dizer: Eu sou lindo. Primeiro, precisamos dar muito amor para nós mesmos. Nossa mente cria tudo, ela precisa aprender a ver o positivo. Mas, como nossa mente está muito próxima do negativo, sempre encontramos desculpas para ver o negativo. Dizemos `sim´ para uma atitude positiva, e em seguida dizemos `mas´ e voltamos para a atitude negativa. Só quando conseguirmos superar esse hábito de pensar negativamente, é que poderemos tomar uma decisão profunda de querer mudar. Pois é a mente negativa que não nos deixa tomar decisões. A decisão firme purifica a negatividade automaticamente e transforma a escuridão em luz. Aceitar é muito precioso. Por isso, escutar os ensinamentos é tão precioso, porque expressa nossa decisão de aprender, de querer mudar”.
A consciência daquilo que é preciso aceitar como real e inevitável pode surgir quase de imediato em nossa mente, mas a aceitação emocional do mesmo fato pode levar muito tempo para ocorrer. Costumamos dizer: “Eu entendo, mas não aceito”, quando intelectualmente aceitamos algo que, emocionalmente, ainda relutamos em aceitar.
A aceitação não é um ponto de acomodação ou de resignação, mas sim um ponto de partida. Afinal, se quisermos transformar algo, precisamos nos apropriar dele. Senão, o que iríamos transformar?
Aceitar um fato doloroso é como aprofundar cada vez mais a densa e resistente camada que encobre o núcleo de nosso interior. Desse modo, nos aproximamos do que Jung denomina de Self. Segundo ele, quando tocamos a consciência do Self, que é a plenitude da psique, nos tornamos inteiros por funcionar como um todo organizado - isto é, não estamos mais divididos por nossos opostos, - pois reconhecemos que são complementares. “Aquele que busca individuar-se não tem a mínima pretensão de tornar-se perfeito. Ele visa completar-se, o que é muito diferente. E para completar-se terá de aceitar o fardo de conviver conscientemente com tendências opostas, irreconciliáveis, inerentes à sua natureza, tragam estas as conotações de bem ou de mal, sejam escuras ou (Nise da Silveira, Jung – Vida e obra, Ed. Paz e Terra, p. 88) claras(*)”.
Aceitar que temos sentimentos paradoxais em relação a muitas situações da vida: queremos e não queremos ou gostamos e não gostamos ao mesmo tempo, nos ajuda a fazer as pazes com nosso mundo interior. A cada dia em que a aceitação emocional cresce, aproximamo-nos um pouco mais da verdadeira natureza de nossa mente, que é sempre clara e confiante.
Quando paramos de lutar contra a dor do sofrimento, estamos preparados para conhecê-lo. A curiosidade por conhecer as causas de nosso sofrimento é outra atitude compassiva que despertamos em nosso interior.
A Segunda Nobre Verdade:
“O sofrimento tem suas causas”
A segunda nobre verdade refere-se à origem do sofrimento. A principal causa de todo sofrimento é a visão incorreta que temos da realidade: pensamos que tudo existe por si mesmo e pode durar para sempre. Assim, desenvolvemos o apego, a raiva e a ignorância: os três venenos mentais raízes.
Materializamos nosso mundo subjetivo nas coisas, situações e pessoas, por meio da projeção. Por exemplo, se desde pequenos apreciamos tomar Coca-cola, agora, ao vê-la, automaticamente pensamos que ela é gostosa. Assim, atribuímos à Coca-cola a qualidade de ser boa por si só, e nos esquecemos que somos nós que a experimentamos e que a qualificamos como boa. A cada momento, então, interpretamos a realidade como positiva ou negativa de acordo com as nossas projeções mentais. O mecanismo de projeção interfere em todas as circunstâncias de nossa vida, apesar de estarmos convictos que a realidade existe por si só, objetivamente, fora de nós.
A visão de que tudo tem uma existência própria e independente, nos leva a acreditar que possuímos um “eu” que é livre e autônomo, uma “[...] entidade distinta, concreta, sólida – independente e separada de quaisquer outros fenômenos. Nesse sentido, é natural que o ego se converta numa barreira intransponível entre a pessoa e o resto do mundo, sem a chance de comunicação e comunhão verdadeiras, não apenas com os outros, mas também com o âmago de si mesma. É preciso demolir essa barreira e este é o problema principal do caminho da (Radmila Moacanin, A Psicologia de Jung e o Budismo Tibetano, Ed. Cultrix/Pensamento, p. 98) libertação(*)” .
Sua Santidade Dalai Lama escreve: “Em uma escritura sobre a sabedoria perfeita, Buda faz a seguinte afirmação profunda: A mente não é para ser encontrada na mente; a natureza da mente é a (Dalai Lama, Como Praticar, Ed.Rocco, p. 177) clara luz(*)”. Isto é, os estados impuros da mente, como o desejo e ódio, não fazem parte da natureza profunda da mente, pois as impurezas são superficiais, e a verdadeira natureza da mente é a clara luz.
Enquanto não atingirmos a iluminação, isto é, superarmos a ilusão de termos um “Eu”, o impulso instintivo da projeção fará parte do nosso funcionamento psíquico. Apenas quando extinguirmos esse hábito mental, é que iremos superar este padrão tão arraigado de ignorância que nos impede de reconhecer a verdadeira natureza de nossa mente: que é pura, compassiva e ilimitada.
Ao explicar o que é a verdadeira compaixão, Sogyal Rinpoche nos ensina a compreender, também, a natureza do sofrimento: “Compreender o que chamo de sabedoria da compaixão é ver com completa clareza seus benefícios, bem como o dano causado pelo seu oposto. Temos de fazer uma distinção muito clara entre o que é o interesse do nosso ego voltado para si próprio e o que é nosso interesse maior e supremo. É confundindo um com o outro que vem todo o nosso sofrimento. Continuamos crendo teimosamente que a valorização do eu é a melhor proteção na vida, mas o oposto é que é a verdade. O apego ao eu cria a valorização do eu, que por sua vez produz uma arraigada aversão ao mal e ao sofrimento. No entanto, o mal e o sofrimento não têm existência objetiva; o que lhe dá existência e poder é somente a nossa aversão a eles. Quando você entende isso, entende que é nossa aversão que atrai para nós toda negatividade e os obstáculos que podem se nos opor, enchendo nossas vidas de expectativas, ansiedade nervosa e medo. Esgote essa aversão esgotando a mente voltada para si mesma e seu apego a um eu inexistente, e você vencerá todo poder que os obstáculos e negatividades possam ter sobre você. Mesmo porque, como é possível atacar alguém ou alguma coisa que simplesmente não (Sogyal Rinpoche, O Livro Tibetano do Viver e Morrer, Ed. Talento, p. 245) existe(*)?”
“O Ego é a bota que desgastamos no espinhoso caminho da espiritualidade” - escutei, certa vez, Sua Santidade Dalai Lama falar numa entrevista para a televisão. Por isso, para praticar a Segunda Nobre Verdade em nossa vida, é preciso procurar manter um estado de abertura e relaxamento frente a tudo e a todos. Em outras palavras, seguir o ditado budista “não se apegue, nem rejeite, então tudo será claro”.
A Terceira Nobre Verdade:
“É possível eliminar as causas do sofrimento”
A terceira nobre verdade refere-se à cessação do sofrimento. Não estamos condenados a sofrer para sempre. Portanto, aceitamos o sofrimento para transformá-lo, e não para carregá-lo como uma cruz.
Por toda nossa vida, iremos sentir emoções, faz parte de nossa natureza. No entanto, podemos abandonar o hábito de alimentar as emoções destrutivas.
Lama Michel Rinpoche esclarece: “Sofrimento é ter apego à dor. Uma coisa é a gente ter dor e sofrer com isso; outra é dizer: ‘Está doendo, mas por que vou sofrer, passar mal?’. Dor e sofrimento são coisas diferentes. Uma coisa é a gente ter dor, e outra é ter o sofrimento. Você pode ter a dor e não achar que ela é algo ruim, pode ( Lama Michel Rimpoche, Uma jovem idéia de paz, Ed. Sarasvati Multimídia, p. 61) transformá-la(*)”.
Mas, afinal de contas, para que queremos transformar o sofrimento? Só para ter o alívio da dor? Quem já não se pegou falando: “Contanto que eu não sofra, tudo bem”. Será que nosso “sonho de consumo” de viver uma vida em paz está baseado apenas na idéia de não sofrer?
Este seria um propósito baseado numa postura de baixa auto-estima, que não se vê capaz de co-criar, de prosperar. Se nossa idéia de felicidade estiver baseada apenas na premissa de não sentir mais dor, viveremos como parasitas, anestesiados pelos mecanismos de defesa que nos impedem de nos mover frente ao desconhecido.
Hoje em dia, tem aumentado o número de livros e artigos em revistas que buscam definir o que é ser feliz. Acredito que ser feliz é ter, cada vez mais, uma mente aberta, capaz de aceitar as diferenças entre nós e os outros, ter disposição e um sentido maior para superar as dificuldades, e por fim, deixar o mundo à nossa volta um pouco melhor do que era quando nele chegamos e, assim, podermos, ao morrer, partir mais leves. Sinto-me feliz, quando sinto-me inspirada a reconstruir e a compartilhar essa vontade com aqueles que almejam o mesmo.
A felicidade depende da clareza interna
É importante reconhecer que o autoconhecimento depende de nossa dedicação ao mundo exterior. Pois é a relação com o mundo exterior que nos ensina a identificar os nossos limites, assim como potenciais e qualidades positivas.
Quando temos um encontro autêntico com a nossa alma, somos postos frente a frente com o que é verdadeiro para nós. Não podemos mais nos enganar. Vamos ter de lidar diretamente com as nossas limitações.
Identificar nossas limitações não é o problema. Mas é preciso verdadeiramente aceita-las. Sermos sinceros conosco. Caso contrário, estaremos sempre transferindo para os outros nossas próprias dificuldades. Quando tratamos os outros com ironia e sem afeto, estamos, na verdade, reagindo a uma dificuldade pessoal e nem nos damos conta de quanto sofrimento estamos criando para os outros e para nós mesmos. Não ferir os outros é uma ação preventiva para não ferirmos a nós mesmos.
A falta de sinceridade para conosco é que nos paralisa e adia nosso processo evolutivo. O problema, portanto, é tentar negar nossas frustrações e limitações, minimizando-as ou encontrando artifícios e falsas soluções para lidar com elas.
São soluções falsas:
• Dar leveza e superficialidade ao que merece atenção e profundidade.
• Fazer o que os outros mandam para não assumir a responsabilidade sobre nossa própria vida.
• Ser submisso à vontade alheia para não ter autoria sobre nossos desejos e necessidades: a culpa (apesar de não existir legitimamente) recai sempre sobre aquele que evidenciou o seu querer.
• Ser perfeccionista para não aceitar nem a si mesmo, nem aos outros.
Então, vamos deixar claro: lidar com a dor do sofrimento não é uma atitude masoquista nem tampouco manipuladora, mas sim um método para nos movermos para a Quarta Nobre Verdade: o caminho para transformar o sofrimento em paz interna.
Podemos aprender a transformar apego em satisfação, raiva em compaixão, ignorância em sabedoria. E assim, teremos reais condições para dar um sentido verdadeiramente útil à nossa vida: como cuidar da continuidade positiva de nossa mente e do ambiente à nossa volta.
Há muito para ser feito, mas sem uma base energeticamente positiva, não é possível fazer nada. Por isso, para nos mantermos no caminho da contínua transformação do sofrimento em paz interna, temos de nos manter abertos para lidar com as dificuldades que surgirem, isto é, ter disponibilidade emocional para lidar com a dor. Não precisamos evocar mais sofrimento do que já temos para praticar esta transformação. Temos sempre o suficiente potencial de dor latente para praticarmos a Quarta Nobre Verdade.
Quarta Nobre Verdade:
O caminho para eliminar as causas do sofrimento
A quarta nobre verdade refere-se ao caminho que conduz à extinção do sofrimento, conhecido por Nobre Caminho Óctuplo. Ele indica um percurso de oito passos que devemos perfazer, com nosso corpo, fala e mente para superar o sofrimento. Mais pra frente os estudaremos separadamente.
As Oito Nobres Atitudes, ou passos corretos são:
1. O entendimento correto
2. A intenção correta
3. A fala correta
4. A ação correta
5. O modo de vida correto
6. O esforço correto
7. A concentração correta
8. A meditação correta
Em sânscrito, samma quer dizer correto, isto é, o que funciona ou o que é apropriado. “Neste sentido, Correto, no Caminho Óctuplo, não significa certo versus errado, mas sobretudo ver versus não ver. Refere-se a estar em contato com a Realidade, em oposição a ser enganado pelos próprios preconceitos, pensamentos e crenças. Samma se refere à Totalidade em vez de à ( Steve Hagen, Budismo Claro e Simples, Ed. Pensamento, p. 60) fragmentação(*)” explica Steve Hagen.
Estarmos dispostos a efetuar uma real mudança em nossa maneira de caminhar é uma atitude resultante do longo processo de amadurecimento das Três Nobres Verdades.
A Quarta Nobre Verdade nos ensina a caminhar sobre nossa própria estrada. Neste sentido, cada um irá precisar ter a sua experiência para obter os benefícios da caminhada. É como tentar contar a alguém a experiência de escalar uma montanha. Podemos compartilhar os relatos, mas o benefício da escalada é apenas daquele que a percorreu.
O mesmo ocorre com os ensinamentos sobre o Caminho Óctuplo: não basta ter uma compreensão intelectual sobre eles, é preciso vivenciá-los. Senão, eles parecerão tão nobres quanto distantes, como se nunca tivéssemos condição de realizá-los. Ao contrário disto, os mestres budistas nos incentivam a sentir os ensinamentos como experiências pessoais, e, portanto, possíveis. Mas, para testar e sentir o sabor de pisar em solo firme, é preciso dar um primeiro passo. Depois que saboreamos o gosto de praticar, não queremos mais parar!
Texto extraído do “O livro das Emoções - Reflexões inspiradas na Psicologia do Budismo Tibetano” de Bel César, Ed. Gaia.