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Encarar a violência para ter paz

por Bel Cesar em Espiritualidade
Atualizado em 08/04/2009 17:06:04


Ontem, recebi um e-mail de uma amiga contando uma fato trágico, que infelizmente tornou-se “mais um”. Ela escreveu: “Hoje tive um dos dias mais tristes da minha vida. Uma funcionária muito querida perdeu o marido de uma forma trágica: assalto à mão armada durante o trabalho. A perda foi totalmente inesperada, embora, que aqui nesta cidade, a gente viva esperando que essas coisas nos aconteçam de uma hora para outra. Mãe de três filhos, sendo um de apenas 3 anos, esta mulher trabalha super bem, nunca faltou, nunca nos deixou na mão e sempre brincamos sobre a paixão que demonstrava sentir pelo marido. Ainda ontem ela brincava que ia tentar fazer um passeio surpresa com ele, mas a surpresa veio antes desta possibilidade. Surpresa que –confesso-, não me surpreende. Faz tempo que não consigo mais viver confortavelmente em São Paulo”.

É difícil ler, escutar e reconhecer o quanto este depoimento toca diretamente a todos nós. Quando penso se isso acontecesse comigo, logo penso que enlouqueceria. Ontem, conversando com meu filho Lama Michel sobre este fato ocorrido, ele ficou em silêncio. De fato, parece que nada nos consola num momento como este. Depois, comentei que achava que não suportaria uma dor destas e ele retrucou que sim. Mudamos de assunto, mas o tema permaneceu em minha mente, senti vontade de me recolher, de ficar quieta, mas as atividades do cotidiano naturalmente nos levam a seguir em frente. No entanto, durante todo o dia, carreguei a sensação de desproteção e tristeza como uma forma de me abrir para o que esta experiência tem a me ensinar.

Aos poucos, comecei a mudar o foco de minhas reflexões, até que consegui encarar a idéia de olhar este fato como mais um chamado para aceitar a inevitabilidade da morte. Afinal, faz parte de nosso desenvolvimento interior encarar os fatos de frente, cara a cara. Isso não quer dizer nos tornarmos frios diante do ocorrido, nem descrentes de que “não há nada a fazer”, mas simplesmente nos abrirmos para acolher o sentimento mais vulnerável de todo ser humano: a dor diante da morte.

Lembrei da história de um discípulo que havia pedido ao seu mestre que lhe ensinasse a se preparar para lidar com sua própria morte. Os anos se passaram. Ele viu o noticiário da morte de milhares de pessoas durante um terremoto. Ele pensou: “Coisas da natureza”. Depois, morreu seu vizinho. Ele pensou: “Coitado”. Em seguida, morreu sua antiga e fiel cozinheira. Ele pensou: “Vou sentir falta dela”. Até o dia em que se deu conta de que estava morrendo, e evocou seu mestre: “Você não me disse que ia me preparar para lidar com esse momento?”. E o mestre respondeu: “Primeiro, te levei a ver a morte de milhares de pessoas, mas você não viu a sua. Depois, o seu vizinho. Você não viu a sua. Pensei que a perda da sua cozinheira o ajudaria a reconhecer a inevitabilidade da morte, mas mesmo assim você não encarou a sua. Bom, achei então que o método mais eficaz para ajudá-lo a encarar a sua morte seria a experiência direta com seu próprio processo de morte. Creio que só agora você está receptivo para aprender o que havia me pedido há tantos anos”.

E assim vai. Quando minha mãe esteve gravemente doente e achei que ela fosse morrer, a mãe de minha amiga estava bem. Minha mãe superou sua crise e a mãe de minha amiga faleceu. Temos todos os dias oportunidades para encarar a finitude desta vida.

Acompanhando pacientes que enfrentam a morte, o processo terminal de pessoas queridas e a dor da perda daqueles que nem conheço (como a tragédia que atingiu a funcionária de minha amiga), volto sempre para o mesmo ponto: quanto mais significativa se torna esta vida, menos arrependimento temos de não tê-la aproveitado e, assim, parece possível aceitar melhor nossa própria morte.

O Budismo nos ensina que a satisfação é o antídoto do apego. Neste sentido, estar satisfeito com a vida que levamos nos ajuda a nos desapegar do passado e a seguir em frente, até mesmo em direção à inevitabilidade de nossa própria morte.

Creio que, de imediato, esta reflexão não possa ajudar àqueles que estão lidando com o impacto de tragédias de uma morte inesperada e violenta, pois a dor da perda ainda precisa ser suavizada. Mas para nós, que escutamos as notícias das tragédias “alheias”, podemos nos aproximar e dedicar um minuto de silêncio para aqueles que estão lidando diretamente com a dor da violência. Desta forma, algo acontece, dentro e fora de nós. Assim como Lama Gangchen nos fala tantas vezes: “As pessoas do século XXI precisam ser educadas a manter uma mente pacífica, de modo que possam agir de forma não-violenta a todo momento e em qualquer situação. A paz é sem dúvida o melhor investimento para nós, para a comunidade global e para as futuras gerações”.


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bel
Bel Cesar é psicóloga, pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano desde 1990. Dedica-se ao tratamento do estresse traumático com os métodos de S.E.® - Somatic Experiencing (Experiência Somática) e de EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento através de Movimentos Oculares). Desde 1991, dedica-se ao acompanhamento daqueles que enfrentam a morte. É também autora dos livros `Viagem Interior ao Tibete´ e `Morrer não se improvisa´, `O livro das Emoções´, `Mania de Sofrer´, `O sutil desequilíbrio do estresse´ em parceria com o psiquiatra Dr. Sergio Klepacz e `O Grande Amor - um objetivo de vida´ em parceria com Lama Michel Rinpoche. Todos editados pela Editora Gaia.
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