O encontro com o sagrado no momento da morte
por Bel Cesar em EspiritualidadeAtualizado em 08/04/2002 11:52:28
Caso Vera
Em Maio de 1997, a pedido da sua médica, fui ver Vera, que sofria de câncer, num estágio avançado. Estava paralítica há dois meses, devido à metástase nos ossos. Vera havia solicitado ajuda psicológica e espiritual.
Quando cheguei ao hospital, não sabia o que iria encontrar. Ao entrar no quarto, vi Vera encolhida sobre a cama. Seu olhar transmitia medo, dor e incompreensão. Assim que cheguei, pegou em minha mão afetuosamente.
Vera disse que precisava de ajuda. Tinha medo de não se recuperar e não poder viver a vida que estava esperando por ela. Agora percebia o quanto havia se dedicado aos outros, esquecendo-se de si mesma. Mas ao mesmo tempo em que reclamava era muito doce.
Sua intenção de se recuperar era totalmente incoerente com o estado físico de seu corpo. Fiquei chocada ao perceber que ela não se dava conta disso. Então, lhe disse: “Vera, enquanto você falava, senti uma energia muito carinhosa. Você reconhece que tem essa energia?”.
Olhou-me surpresa como quem não sabia do que eu estava falando. Então, disse-lhe para fechar os olhos e sentir sua própria energia de amor, enquanto eu cantaria para ela. Com um olhar infantil, como o de uma criança que aceita ir para a cama porque a mãe diz que vai contar uma história, fechou os olhos. Cantei alguns mantras como uma cantiga de ninar, depois fiquei em silêncio. Ainda de olhos fechados, me disse: “Eu vi uma monja andando numa estrada com roupas longas. De repente ela não podia mais andar – não ia nem para frente nem para atrás”. Então lhe respondi: “Vamos cuidar das pernas dela!”.
Disse-lhe que continuasse a fazer a visualização, e que eu continuaria a cantar. Fui até seus pés e os massageei. Sugeri que ela agora imaginasse como uma pessoa anda quando está satisfeita.
Iniciei uma prática de purificação entoando as sílabas EH YAM RAM LAM BAM. Segundo o budismo Tibetano, esses são os sons primordiais dos cinco elementos - terra, fogo, água, ar e espaço - que formam o universo. Para que nossa energia física, mental, emocional e espiritual possa atuar positivamente, esses elementos não podem estar poluídos e desgastados. Mas, conforme envelhecemos, eles perdem naturalmente a sua força.
No processo da morte, todos os elementos que integram o nosso corpo e mente são removidos e desintegram-se. Como, geralmente, os cinco que nos formam estão impuros, vivemos esse processo de desintegração com muito sofrimento físico e mental. Mas, se passarem por uma purificação, podemos viver esse processo de forma mais gentil e suave. Como Gangchen Rimpoche nos diz: “O corpo pode sofrer com o abalo dessa desintegração, mas a mente pode continuar em paz.”
Cada elemento está associado a um estado mental.
O elemento terra, por exemplo, quando desequilibrado, causa instabilidade e dúvida.
Já o elemento água provoca a sensação de separação e solidão.
O elemento fogo em desequilíbrio, causa mau humor e apatia.
O elemento ar desequilibrado gera ansiedade.
O sistema tântrico de purificação dos elementos trabalha em três diferentes níveis energéticos: o grosseiro, o sutil e o muito sutil. Entoar os sons primordiais, visualizados com as suas cores correspondentes e gestos sagrados, faz parte da prática de Autocura Tântrica NgelSo. Vera mostrou-se receptiva o tempo todo. Estava concentrada e respirava com regularidade.
Quando me despedi, ela pediu-me várias vezes que eu não deixasse de vir no dia seguinte. Aquela noite Vera dormiu muito bem e segundo a médica, foi possível diminuir 80% da medicação contra a dor.
Em nosso segundo encontro, conversamos sobre o poder de cura do perdão. Expliquei a ela que perdoar é “deixar sair”, desapegar-se do que pesa dentro de nós: ressentimentos e frustrações. Perdoamos a pessoa e não necessariamente a ação que nos magoou. Perdoar é também “deixar entrar” de volta em nosso coração uma pessoa que um dia dele excluímos. Muitas vezes sentimos que excluímos nós mesmos de nosso coração. Perdoar é dar uma nova vida a si mesmo.
Existe uma grande diferença entre sentir ter de perdoar e querer perdoar. Não podemos forçar um sentimento. Esse só pode ser verdadeiro se espontâneo.
Apesar de sonolenta, Vera demonstrou grande interesse em fazer uma meditação dirigida sobre o perdão. Essa meditação dirigida à capacidade de perdoar, elaborada por Stephen Levine, inspira o praticante a trazer à mente a imagem ou idéia de alguém por quem alimente ressentimento. Inicialmente o praticante é encorajado a entrar em contato com o sentimento que surge ao evocar essa imagem. Em seguida, lentamente convida-se essa pessoa a passar da mente para o seu coração. A meditação inclui também pedir perdão a quem quer que se tenha causado dor, intencionalmente ou não, e a perdoar a si próprio. Quando realizada com sinceridade, essa meditação é uma experiência emocionalmente regeneradora.
Após a meditação, Vera repetiu que se perdoava. Fiquei ao seu lado, em silêncio, segurando sua mão durante um bom tempo. Enquanto escutávamos música, Vera, ainda de olhos fechados, me disse o que veio em sua imaginação. Fiquei surpresa. Ela tinha se visto, sozinha com Jesus Cristo num campo de futebol, brincando de jogar pedrinhas num lago. Estimulei sua visualização e disse: “Por que você não aproveita esse momento tão descontraído com Jesus e lhe pergunta o que sempre quis saber?”
Ficamos mais bom um tempo em silêncio, escutando a música e depois fui embora.
Quando telefonei no dia seguinte, a enfermeira me disse que Vera dormia profundamente e que parecia serena. Pedi à ela que me ligasse, caso qualquer coisa lhe chamasse a atenção. Às 19 horas, ela me chamou para vir. Vera estava muito mal.
Pensei que quando chegasse a encontraria inconsciente. Mas Vera estava acordada, com muita dor e ansiosa. Pedia a todo momento seus parentes e amigos a ajeitassem na cama. Não encontrava uma posição em que pudesse acomodar seu corpo.
Ao me ver, pediu que eu fizesse alguma coisa. Disse que podíamos fazer a prática de Autocura Tântrica NgelSo, como havíamos feito no dia anterior. Todos ali presentes participaram concentrados. Vera, se acalmou e acenava com a cabeça ao ouvir palavras como “paz”. Quando parava, por alguns instantes, de cantar, ela voltava a se agitar e repetia a pergunta: “Para onde estou indo?”.
O ritmo agitado de pessoas que entravam e saíam do quarto e das enfermeiras que não conseguiam pegar sua veia para injetar a medicação, deixava Vera ainda mais ansiosa.Os amigos e parentes deixavam-se ser levados pela angústia de Vera. Cada um, à sua maneira, queria acalmá-la. Mas agiam ansiosamente e assim aumentavam a inquietação de Vera. Então, pedi a eles que se reunissem ao seu redor e mantivessem a calma.
A um certo momento, a médica me avisou e que Vera faleceria dentro de uma hora. Para nossa surpresa, todo este processo durou ainda mais três horas. Sua respiração se tornava cada vez mais alterada e o batimento cardíaco cada vez mais lento. Coloquei no topo de sua cabeça um creme com as pílulas sagradas, abençoadas por Lama Gangchen Rimpoche.
Vera não estava em paz, continuava agitada. Eu sentia de devia fazer alguma coisa diferente, mas não sabia o quê. Por um momento, me concentrei no meu mestre, Lama Gangchen Rimpoche, pedindo por inspiração. Pensei na importância de evocar para ela também a sua figura de fé. Lembrei da visualização em que Vera havia se encontrado com Jesus Cristo. E disse a ela : “Vera, Jesus Cristo está no topo de sua cabeça! E como Ele é lindo!... Você está linda também... Vocês estão brincando de jogar pedrinhas naquele lago... Estão rindo... Sabe vocês estão cada vez mais parecidos. Você está admirando Jesus Cristo. Vocês dois são uma só luz brilhante”.
Enquanto dizia essas frases, fui incentivada pela expressão de seu rosto que, pela primeira vez, tornou-se suave. Ela deu um leve sorriso. O olhar de Vera se tornou cada vez mais distante e em poucos segundos ela parou de respirar. E então eu sussurrei para ela: “Sobe, sobe, sobe, com sua mente, para cima, para cima, para cima”.
Todos os presentes estavam com as palmas das mãos voltadas para Vera. Comecei a cantar o mantra do Buddha da Compaixão OM MANI PEME HUNG. Logo eles passaram a entoar comigo a melodia do mantra. Estávamos todos exaustos, mas recompensados pelo sorriso de Vera.
Sintonizar Vera com sua imagem de fé, deu a ela a possibilidade de transformar os seus momentos de angústia numa mente positiva. Estar conectado com a fé é encontrar um refúgio seguro.
“Ao tomarmos refúgio, automaticamente nos ligamos a poderosos protetores sutis.(...) Como resultado, morreremos com a mente alegre, bonita e em paz, e a morte será para nós uma experiência de cura”, escreveu Lama Gangchen Rimpoche em seu livro NgelSo – Autocura III (Ed.L.G.Sarasvati).
trecho do livro da autora: “Morrer não se improvisa” da Editora Gaia, disponivél para compra abaixo