O rabino e o ninho vazio
por Adília Belotti em EspiritualidadeAtualizado em 10/09/2009 16:42:10
Perguntaram para o rabino: quando a vida começa? E ele respondeu: a vida começa quando os filhos saem de casa e o cachorro morre!
Adoro essa história, fico até imaginando o sorriso malicioso do rabino sábio e a perplexidade do aprendiz!
Boa parte dos meus amigos está na fase “ninho vazio”, remexendo lá no fundinho para ver o que sobra debaixo da palha... e eu fico pensando: OK, a gente entende a questão dos filhos, mas por que o cachorro?
Hoje, passeando com a Zuza, essa border collie hiperativa e com déficit de atenção, que nasceu há um ano lá em casa, tão brilhante que a gente brinca que ela parece uma lontra (?!), percebi o que o rabino queria dizer.
Ritmo! Essa é a palavra! Ritmo!
Desde que nascemos seguimos um padrão mais ou menos previsível, aprendemos a caminhar, a andar de bicicleta, a lidar com as espinhas, com os corações partidos, jogamos os diplomas para o alto, ficamos orgulhosos com o primeiro emprego, com o segundo, o terceiro; comemoramos o salário melhor, descobrimos o outro, casamos, temos filhos que precisam aprender a caminhar, a andar de bicicleta, têm que fazer lição de casa, jogar afinal o diploma para o alto e cair no mundo... e é mais ou menos por aí que eles saem de casa, levando nossos hábitos, nossas certezas, enfiando uma nota final, dissonante, naquela sinfonia tão familiar de movimentos...
De repente, eles se vão, e os allegros e os prestíssimos fazem falta, a pausa no lugar dos passos do minueto alucinado que eles nos faziam dançar, incomoda.
E a vida perde o ritmo.
É aí que entra o cachorro. Fui caminhar com a Zuza ontem, e na semana passada. Dois ensaios desajeitados, mais por desencargo de consciência do que por prazer. Foi o bastante para hoje ela vir cobrar a minha presença na dança do dia. Quer dançar? Preguiça... Vamos, vá? E abana o rabo, convincente.
Lá sou eu arrastada para a rua, pensando que os cachorros, como os bebês e os filhos, são grandes criadores de ritmos. Sem sequer nos darmos conta inteiramente de “como foi que aconteceu”, um dia nos vemos irresistivelmente seduzidos, puxados pela mão ou pela guia, rodopiando por harmonias ora simples ora dissonantes, nota, pausa, intervalo, nota, pausa... bravo!!!!
Confortavelmente instalados atrás do carrinho de bebê, do triciclo, da bicicleta de rodinha, do primeiro carro, do rabo que abana, da guia que puxa, a gente se deixa levar pelo ritmo deles e se engana pensando que somos nós os maestros. Ao contrário, são eles que marcam os compassos da nossa vida e vamos extraindo daqui e dali acordes simples, de notas rápidas, apressadas, até mesmo daqueles movimentos em que estamos afinal sós, bem longe deles...
Um dia eles se vão e o mundo fica silencioso. Dá uma saudade danada, mesmo dos momentos de adágios e andantes, largos e lentos. Desajeitamos...
Mas não é justamente no silêncio que nascem todos os ritmos? O próximo acorde, não brota da pausa? E aí, quase sem sentir, você se pega tamborilando na mesa ou marcando um ritmo com os pés no chão, olha para frente, reconhece o parceiro antigo da primeira dança, do primeiro baile. Percebe então que a vida acabou de começar... o rabino, como sempre acontece com os rabinos das histórias, tinha razão!
* A foto do ninho vazio é de Erik bij de Vaate