O melhor modo de ser você mesma
por Silvia Malamud em PsicologiaAtualizado em 10/04/2008 16:09:28
Esse caso, como outros que já relatei aqui, faz parte das histórias reais sobre pessoas comuns como eu ou você, por exemplo.
Como sempre, os nomes e situações mais reveladores são deliberadamente trocados no intuito de preservar a privacidade dos envolvidos.
Sandra apareceu no meu consultório indicada por uma outra paciente minha. Num primeiro momento, fiquei encantada com sua suavidade e beleza, mas ao mesmo tempo em que me fascinava, sentia algo de inalcançável naquela jovem moça de seus 32 anos. Este fator de ser inacessível veio como marca sua e como sua principal queixa terapêutica...
Sandra trabalha numa empresa do ramo fotográfico e está casada há cerca de cinco anos. Conta que no trabalho está em ritmo de ascensão, fato que sente causar inveja nas suas colegas de trabalho. Diz que se dá muito bem com os homens em geral e que detesta submissão, ou melhor, mulheres submissas. Sua questão principal está na área da sexualidade. Embora tenha um casamento que já dura algum tempo sente que o mesmo pode terminar repentinamente. Está com medo. O motivo principal é que nunca havia conseguido ter uma relação sexual inteira com o marido, ou seja, Sandra tinha algo comumente chamado de vaginismo, não havia penetração.
Esse era o motivo desta paciente ser inatingível... Porque realmente era.
Conclui que teríamos uma longa travessia até que ela pudesse aceitar o que mais desejava que era poder ter uma relação sexual completa.
Sandra contava que em suas fantasias tinha medo de que, se fosse penetrada, seus órgãos internos poderiam se desconfigurar, romper-se. Tinha tanto medo que nas vezes que quase chegavam na penetração, ela ficava com fortes tonturas sentindo a possibilidade de desmaiar.
Aqui temos vários aspectos emocionais incluídos que Sandra bravamente teve que autoconfrontar... Entendeu, entre muitas situações suas, que tinha um pai extremamente dominador e que desqualificava tudo que a mesma fazia. Que pela sua força, deixava a sua mãe submissa pelo medo. Compreendeu que estava de mal com todos os homens porque todos representavam para ela um pai hostil e invasivo, que simbolicamente “penetrava” nas mulheres, tornando-as submissas, acabando com elas. Na sua imaginação, ela era a defensora dessas mulheres, mas havia se aliado à força dos homens, sabendo lidar com eles, mas até certo ponto.
Muito exata a história, não é? Se o fato de Sandra saber de tudo isso fosse suficiente para curar seu vaginismo estaríamos todos nós felizes e literalmente satisfeitos. Mas ocorre que as coisas na vida nem sempre se resolvem apenas por sabermos do que pode estar numa camada mais evidente. No caso de Sandra, trabalhei junto com uma ginecologista que pacientemente foi apresentando à própria Sandra os seus órgão genitais. Nas sessões com a ginecologista, ora ela via com um espelho seus órgãos, ora ela via tudo o mais internamente através de fotos em livros e, aos poucos, foi desmistificando seus medos infundados de que seus órgãos pudessem ser danificados numa relação sexual. A questão aqui era puramente simbólica. O medo de ser penetrada e destruída estava diretamente ligado ao receio que tinha de ser fragmentada como identidade, da mesma forma que ocorreu com sua mãe.
Tudo isso ainda não havia sido suficiente para que ela aceitasse ser efetivamente mulher. No início da conversa, tinha enfatizado que nunca iria querer filhos.
Desde o começo do seu tratamento, optei também por fazer sessões de EMDR com ela, mas as sessões não evoluíam em nada. Dizia sentir muito sono toda vez que fazíamos as sessões. Algo em mim que confio muito, que é a minha intuição, dizia-me para que eu continuasse a tentar o EMDR. Foi numa dessas tentativas que Sandra, no meio da sessão, quando novamente evidenciou estar com sono, me disse: “sabe que esse sono todo me fez lembrar de um sonho recorrente“. Ela estava em EMDR! Perguntei qual era o sonho e ela me revelou que freqüentemente sonhava estar subindo e descendo morros ou escadas e sempre que tinha esse sonho/pesadelo acordava extremamente angustiada sem solução para ele.
Perguntei se ela gostaria de fazer o EMDR com a cena do sonho, o que ela prontamente topou. Surpreendentemente, Sandra estava em sua cena no EMDR subindo e descendo montanhas até que, de repente, as montanhas se transformam em escadas desconhecidas e estas se transformam nas escadas da casa em que morou até os seus cinco anos de idade. Na seqüência, Sandra diz que se vê com seus cinco anos subindo alegremente as escadas até que chega numa porta que está fechada. Na próxima cena, Sandra emociona-se e chora compulsivamente; diz que abre a porta do quarto e vê seu pai e sua mãe juntos na cama. Pergunto o que eles estavam fazendo. Ela me diz que a questão não era aquela, que eles estavam apenas abraçados, mas que ela percebeu que quando entrou no quarto, estava nua.
Sandra afirma que esta cena nunca ocorreu na vida real, mas no momento em que a viu no EMDR, percebeu toda a sua sexualidade, todos os seus medos e desejos se misturando em fantasias e realidade. Tem um forte momento de insight, de revelação interior. Esvaziou definitivamente seus padrões de funcionamento que estavam a serviço de protegê-la de si mesma.
Saiu da sessão estranhando a sensação de leveza apesar da cena revelada. Notem que cada pessoa tem reações e vivências muito particulares e únicas. Sempre digo que somos imensamente criativos para tudo. Inclusive, para criar nossos subterfúgios no sentido de nos sairmos “bem” de uma situação, por exemplo com cinco anos de idade, e a partir de então, criando, mais e mais escapatórias à medida em que a nossa cognição aumenta e não liberamos o que tememos. Funcionamos, então, encapsulando os medos e criando as nossas defesas.
Depois deste episódio, Sandra finalmente pode ter a sua vida sexual dentro de um padrão de normalidade. O casal planeja ter filhos e ela diz que hoje nem acredita que já esteve naquele estado. Desconectou, desfez-se o sentido anterior.
Em decorrência deste tratamento, outros aspectos de sua personalidade mudaram para melhor e novas situações surgiram.
Sandra teve uma situação de alerta que a fez se mover. A pergunta que fica é: Será que temos que chegar a pontos alarmantes em nós mesmos para que questões que nos incomodam possam ser visitadas e transformadas?