Sonhos recorrentes: Um caso de regressão - Parte 3
por Ronaldo Cardim em PsicologiaAtualizado em 08/04/2020 11:35:11
Existem sonhos que se repetem ao longo de grande parte da vida e que têm sua causa estruturada no período de gestação e ou na hora do nascimento.
Esses sonhos também vêm carregados de uma forte carga emocional e sensação de realidade. Outra característica comum a esses sonhos é a presença de familiares bem próximos, principalmente pai e mãe, ou aparição de monstros muito estranhos e perigosos. Vou aqui, mais uma vez, fazer uso de um exemplo para ilustrar essa explicação.
"Uma mulher próxima dos quarenta anos, casada, uma filha a quem trata com excessivos cuidados (mãe superproterora). Exageradamente crítica e impaciente com o marido. A tal ponto que quando a filha estava com dezessete anos ele sugeriu à esposa que buscasse tratamento, caso contrário, quando a filha completasse os dezoito anos ele pediria a separação".
Foi dentro desse quadro que a mulher procurou por ajuda psicológica (até aqui nenhum sinal de sonho). Nas sessões iniciais com o psicólogo, relatou que reconhecia a gravidade das suas falhas de comportamento como mãe e como esposa, sabia que não agia bem. Mesmo reconhecendo sua culpa, dizia que por muitas vezes tentara mudar a forma de agir sem nunca conseguir. Em minucioso e detalhado processo de anamnese, ficou claro que tivera desde a infância uma discreta relação de rejeição com a mãe, a quem em muitos momentos sentira ausente e negligente. A mãe, já falecida, sempre foi uma pessoa bastante simples, semianalfabeta, de família pobre que morou toda a vida no sítio. Embora estivesse sempre voltada para a labuta com os animais e plantação, esforçava-se muito para não negligenciar com os três filhos, dois meninos e ela, que era a mais nova. Sentia os esforços da mãe em tratá-la com maior atenção que aos garotos, porém, não sabia explicar porque via esses esforços como falsidade. No decorrer das sessões de psicoterapia, relatou um sonho muito estranho que se repetia com acentuada frequência. No sonho se via, ainda bem garotinha e a mãe caminhando de mãos dadas por umas estradas de terra. A certa altura a mãe, muito nervosa, solta de sua mão e manda ela ir embora sozinha. Desesperada, vê a mãe virar-lhe as costas e voltar pelo caminho. Lembra-se que em alguns desses sonhos via um monstro que parecia uma mistura de lobisomem com dragão, passando bem pelo meio da estrada e não dá a menor atenção para elas. Embora a figura desumana e monstruosa em nada parecesse com um ser humano, ela no sonho o identificava como sendo o pai. Ao acordar a sensação que ficava era de realidade, insegurança e medo muito grande.
Sentindo que havia uma estreita ligação entre os sonhos que se repetiam e as queixas iniciais da mulher, o terapeuta sugeriu recorrerem a sessões de regressão de memória. As primeiras sessões pouco trouxeram de objetivo para o entendimento do caso. Porém, a certa altura do tratamento durante uma sessão de regressão, ela sentiu-se encolhendo de tamanho e, na sequência, projetando-se para o ventre materno. Em poucos segundos conseguiu reviver sentimentos e experiências de toda sua vida gestacional. Identificou com bastante clareza a constante vontade que a mãe sentia de não levar em frente a sua gestação. Sentia com todo o peso o sentimento materno de não querer aquela gravidez. Suportou e vivenciou por todo o período da gravidez o sentimento de rejeição da mãe por aquilo que levava em seu ventre. Junto a esse entendimento vinha também uma percepção clara das experiências que a mãe vivenciava em sua realidade exterior.
Percebeu que a mãe trabalhava de forma quase brutal nas tarefas da casa e nas atividades pesadas do sítio para poder sustentar os filhos e que o pai não fazia nada, bebia muito e vivia ausente. Ela sentiu que foi gerada numa noite em que o pai havia chegado totalmente embriagado, agredido a mãe física e verbalmente e depois a submeteu a um ato sexual que mais parecera um estupro. Compreendeu que ambas as formas de agressões do pai para com a mãe já existiam desde muito antes de ela ser concebida e continuaram até próximo o nascimento. Até um dia em que o pai chegou embriagado como sempre e começou sua rotina de agressões. Mas nesse dia a mãe com a gravidez já próxima aos nove meses, partiu para cima dele e deu-lhe um forte empurrão e ele caiu para o lado de fora da porta da cozinha. Com ele ainda caído a mãe, pegou uma foice que premeditadamente havia deixado ao lado do fogão de lenha, apontou para ele e falou que daquele dia em diante: "no dia em que ele dormisse de novo dentro daquela casa e estivesse ele bêbado ou não, ela o mataria". Com certeza, ela foi muito convincente, pois embora continuasse bebendo, desde aquele dia ele nunca mais a incomodou com suas bebedeiras, nem tão pouco dormiu dentro da casa novamente.
Ao retornar do estágio de relaxamento hipnótico em que se encontrava para a regressão, trouxe consigo todos os entendimentos e explicações referentes ao sonho e a todos os seus sentimentos e falhas de comportamentos como mãe e como esposa.
Com relação ao sonho: "os caminhos por onde ela e a mãe passavam eram o período da gravidez. A mãe muito nervosa, era o estado que a mãe vivera todo aquele período. A mãe soltar-lhe a mão e virar-lhe as costas significava a constante rejeição da mãe pela gravidez. A figura do pai que ela registrou como monstruosa por tudo que a mãe sentia com relação a ele pelo seu comportamento brutal".
Com relação ao sentimento para com a mãe: "o sentimento de rejeição que sentia para com a mãe era resultado direto dos sentimentos da mãe para com ela no decorrer da gravidez. Depois do nascimento, mesmo a mãe tratando-a realmente com mais atenção e carinho isso lhe soava como falsidade, pois tinha em si registrado um sentimento de rejeição que se sobrepunha a qualquer outro.
Com relação à forma de lidar com a filha: "superprotegia a filha porque, inconscientemente, não suportava sequer a ideia de que a filha pudesse ter por ela qualquer sentimento de rejeição ou que a filha vivesse alguma experiência parecida com ausência de afeto materno".
Com relação ao marido: "apesar do comportamento normal do companheiro como pai e como marido, tinha nele projetado estigma do comportamento sempre errado do pai dela. Pelos sentimentos da mãe para com o pai, ela aprendeu que (marido nunca faz nada que seja útil) e sem perceber tratava o marido sob esse entendimento.