Afinal, cadê o anticristo? - Parte II
Atualizado dia 06/06/2006 12:55:24 em Autoconhecimentopor Fernando Cavalher
Nietzsche cria a metáfora dos filósofos hiperbóreos – conjunto de indivíduos que defende a plenitude da vida humana – de que se faz expoente maior. Estes se organizam como inimigos do cristianismo. Neste trecho da obra, o filósofo está delimitando as bases filosóficas de seus argumentos. A característica dos hiperbóreos é ter um sistema de valores individual: “Deve a virtude ser nossa criação, nossa defesa e nossa necessidade mais pessoal: tomada em qualquer outro sentido, não passa de uma armadilha.”; e, mais adiante, “que cada um crie sua própria virtude” (§ 11).
No outro lado deste ringue filosófico, Nietzsche aponta os teólogos e acusa Immanuel Kant de ser um de seus representantes, de ser moralista. Este grupo caracteriza-se como disseminador de uma moral massificada, de um sistema de definições de certo e errado válido para todos. No mesmo parágrafo onze: “A ‘virtude’, o ‘dever’, o ‘bem em si’, o bem como caráter da impessoalidade e da generalidade – quimeras em que se exprime a decadência, a agonia final da vida...”. Em todo o livro acusa os teólogos de disseminarem idéias contra a vida, os instintos, o corpo, a sexualidade e a saúde, humanos.
A partir daí começa a análise da religião cristã. Implacável, ressalta que o cristianismo carece de qualquer contato com a realidade, que seus princípios – Deus, espírito, pecado e outros – não podem ser encontrados objetivamente. Analisa o Deus Cristão como reflexo da psicologia dos cristãos. Chama-o pálido, débil, e decadente, um Deus arruinado, “Deus degenerado em contradição da vida.” (§ 18).
Nietzsche também fala de outras religiões. Compara o cristianismo com o budismo (§ 20) e mesmo com o código de Manu (§ 56). Mas o brilhantismo nietzscheano mostra-se em toda sua magnitude quando o filósofo volta-se para a história do povo judeu. Descreve como este povo traiu seus ideais como nação e como torceu a realidade para fazê-la compatível com suas necessidades, aquelas de um povo pequeno e ameaçado, optaram pela “falsificação de toda a natureza, de toda a realidade, tanto do mundo exterior como do mundo interior.” (§ 24). Mostra como Deus foi deliberadamente deturpado para servir às necessidades de poder do sacerdote, que “chama ‘vontade de Deus’ aos meios que emprega para alcançar ou manter [a situação que lhe convém]”(§ 26). Mostra como o cristianismo surgiu de deturpações criadas sobre as deformações anteriormente fixadas pelo povo judeu. Estas idéias levantadas contra o povo judeu e sua história lançaram sobre Nietzsche a suspeita de anti-semitismo. Porém, o filósofo deixa claro que considera os cristãos – especialmente, os alemães – ainda mais inferiores que os judeus, o que invalida as falsas acusações de nazismo, imputadas a ele.
É então que "O Anticristo" atinge seu clímax de crítica; este momento precioso de sua análise (análise, já que este filósofo é avesso a teses) em que Nietzsche separa radical e definitivamente Jesus Cristo e o cristianismo: para ele, não há coisas mais antitéticas. Não é que Nietzsche não tenha críticas a respeito de Jesus, tem-nas. Porém, admira-o em alguns pontos e, por momentos, sentiu-se identificado com ele, como revela em algumas cartas pessoais. É em uma mistura de afirmação do evangelho e ironia que, justamente no parágrafo 33, Nietzsche escreve que Jesus “acabou com todos os ensinamentos judaicos de arrependimento e de perdão; sabia que só com a prática da vida é que alguém pode se sentir ‘divino’, ‘bem-aventurado’, ‘evangélico’, a cada instante ‘filho de Deus’. O ‘arrependimento’, a ‘oração pela salvação’ não são caminhos para Deus ... O que foi destronado pelo Evangelho é o judaísmo das idéias de ‘pecado’, de ‘remissão dos pecados’, de ‘fé’, de ‘salvação pela fé’, toda a dogmática judaica foi negada na ‘boa nova’.” Por isso, segundo ele, os cristãos passaram “dezenove séculos ... escandalosamente preocupados consigo próprios; o que a todo momento pretendiam era procurar o seu interesse e construíram a Igreja opondo-se ao Evangelho.” (§ 36). Já que “... no fundo só existiu um cristão e este morreu na cruz. O ‘Evangelho’ morreu na cruz.” Nietzsche propõe-se a contar a “verdadeira [no sentido de oculta, não naquele de verdade única e última] história do cristianismo” (§ 39).
Para isso, Nietzsche concentra sua crítica contra Paulo de Tarso, aquele em quem encontra a gênese da perversão do Cristo e de seus ensinamentos. “À ‘boa nova’ sucedeu-se imediatamente a pior de todas, a de Paulo. ... Nele se encarna o tipo oposto ao ‘alegre mensageiro’ ... A vida, o exemplo, o ensinamento, a morte, o sentido e o direito de todo o Evangelho – já nada existia quando este falsário no seu ódio apoderou-se do que lhe podia ser útil.” (§ 42). E é nesse ponto que descobrimos mais uma vez que Nietzsche também está livre de mais uma das acusações ignóbeis levantadas: a de que seria um filósofo niilista: “o cristianismo fez uma guerra de morte contra ... nós, contra tudo o que há de nobre, de alegre, de magnânimo sobre a Terra, contra nossa felicidade sobre a Terra.” (§ 53). Pode-se acusar de niilista um filósofo que defende nossa felicidade sobre a Terra?
Depois de toda sua crítica contra o cristianismo, pode-se levantar a dúvida: será que Nietzsche luta contra Jesus? Provavelmente não; mas claro está que o filósofo tenta salvar o Salvador de seus mais ferrenhos perseguidores e de seus piores adversários de todos os tempos: os cristãos.
Jesus admoestou contra os falsos profetas e os falsos messias no Evangelho de Marcos. Marcou seu aparecimento para antes do ano 100 da era cristã. Não seria Paulo este falso profeta? Não seria ele o anticristo? Só uma questão não pode ser formulada: não seria Nietzsche o anticristo? Não se duvida de uma informação já anteriormente dada! Nietzsche assina claramente sua obra: Nietzsche – O Anticristo.
Parte I
Texto revisado por Cris
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