AINDA SOBRE CÂNCER E VIDA
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Autor Maria Antonieta de Castro Sá
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 25/02/2007 19:45:01
Como tenho recebido vários e-mails, fazendo referência ao artigo que aqui publiquei ainda este mes, sob o título "Câncer e Vida", volto ao tema para ilustrar um pouco mais a questão.
Creio que explicações técnicas sejam mais apropriadas em palestras, nas quais as pessoas têm chance de formular suas dúvidas ou mesmo sugestões.
Prefiro usar este espaço para contar exemplos concretos. Assim se pode entender melhor e de forma menos cansativa, o que há de especial na orientação psicológica de um paciente de câncer e seus familiares.
Dona Neusa é uma senhora de cinquenta e um anos, hoje. Quando seu filho me procurou, no consultório, ela contava quarenta e seis anos e acabara de receber, muito friamente, um diagnóstico de câncer cerebral. Toda a família se encontrava em estado de choque e um amigo do rapaz, que já fora meu paciente, encaminhou-o a mim.
Ela e o marido moravam numa chácara, nas imediações de São Paulo - um sonho que o casal recentemente realizara, após o casamento dos dois filhos. Mas de repente ela começou a apresentar esquecimentos incompreensíveis, para uma mulher caprichosa e dedicada à sua querida casa: deixava a geladeira aberta, tirava de lá alguma coisa para usar na próxima refeição e não usava, parecia não dar mais atenção ao estado de seus jardins, onde antes não se via uma folha de mato sequer - e também se mostrava com pouca disposição, passando grande parte dos dias deitada na sala, como que vendo a vida passar, silenciosamente. Tampouco se queixava de nada.
O marido estranhava seu comportamento, mas talvez não quisesse considerar a possibilidade de que algo sério estivesse ocorrendo - afinal, ele sempre tivera seu mundo próprio, do qual a esposa também nem sempre partilhava. Eles construíram aquela imensa casa, naquela imensa área e ali moravam juntos, mas em poucas situações "viviam juntos", como aliás acontece com tantos casais...
Até que um dos esquecimentos de D. Neusa acarretou-lhe um acidente doméstico e foi preciso levá-la a um Pronto Socorro. Ali foram providenciados exames de rotina, após uma queda seguida de desmaio, como ela tivera. E um exame sugeria a realização de outro e no dia seguinte, uma tomografia acusou a existência do tumor cerebral, felizmente de localização não aprofundada.
Impunha-se uma cirurgia, que foi realizada tão rapidamente quanto era possível. E a análise do material retirado deu conta de que se tratava de câncer. Sessões de quimioterapia seriam necessárias em seguida. Tudo isso se passou em menos de quinze dias e a família, atendida por eminentes profissionais de um excelente hospital, foi recebendo comunicados de cada etapa necessária, com a atenção que se usa, quando se "comunica" que algo acontece e que algo precisa ser feito.
Dona Neusa, felizmente, encontrava-se bastante "zonza" por conta do próprio tumor, de modo que compreendia o que se passava, mas não era, antes da cirurgia, capaz de muita reflexão sobre nada.
Já o marido e os filhos "entraram em parafuso", como se diz com simplicidade: "-Será que mamãe vai morrer? E se viver, como será agora? Como cuidaremos dela? Como ficará a vida de papai? Como poderemos abordar tudo isso com ela? Será que poderemos?"
Foi nesse ponto do drama, que um dos filhos veio a mim.
Antes de responder qualquer questão, eu tive o cuidado que sempre tenho e fui conversar com o oncologista responsável pelo caso de D. Neusa. Ele me posicionou, em não mais de quinze minutos, sobre as características principais do quadro e o respectivo tratamento. Considerou que as possibilidades de sobrevida daquela senhora, em termos estatísticos, era de aproximadamente dois anos e que considerava uma boa medida, eu entrar em cena "para conter um pouco da ansiedade daquele marido, cuja presença só atrapalhava nos procedimentos necessários".
Quem se envolve nos meios relacionados à oncologia, em nosso país, logo se acostuma ao fato de que os profissionais desta área, com honrosas exceções (que existem), protegem-se, tratando de tumores e evitando lidar com as emoções que os mesmos desencadeiam nas pessoas. Isto é assunto para outros artigos.
Nós, então, psicoterapeutas que penetramos neste universo, devemos em primeiro lugar, interpretar para o paciente e familiares mais próximos, o que está ocorrendo objetiva e subjetivamente, ou seja: devemos lhes oferecer a tradução emocional daquele terrível diagnóstico. Devo ser muito sincera, aqui: Não é tarefa para terapeutas sem treino específico.
Concretamente, eu ajudei os filhos e marido de D. Neusa, a se conscientizarem do que lhes assustava mais e dos melhores recursos que tinham para enfrentar aquela situação. Mantive encontros quinzenais com eles e me concentrei, então, na paciente em si.
Dona Neusa é uma criatura de grande potencial afetivo, que, contudo, teve poucas chances de dar vasão ao mesmo, entre as pessoas com quem conviveu até contrair aquele câncer. Era no cuidado das plantas e em seus primorosos trabalhos manuais, que o mesmo potencial vinha sendo utilizado. Mas os hábitos rígidos de seu marido não lhe davam, também, muita chance de partilhar com outras pessoas, as coisas lindas que chegara a fazer em sua chácara.
E por que ela se acomodava àquela vida tão recolhida, se sempre foi tão afetiva? Porque foi condicionada a obedecer e a satisfazer, sobretudo, às expectativas masculinas que a rodearam nesta vida.
O sonho daquela chácara fora uma ilusão de poder, enfim, ser dona de seu universo. E ali ela o era, de fato. Mas pagava o preço de se retirar do mundo, para tanto, porque do dia a dia do casal quase ninguém participava.
Por outro lado, doenças potencialmente letais costumam acordar nas pessoas, o desejo de lidarem melhor com a vida, mesmo quando esta se mostra mais limitada.
Na relação comigo, D. Neusa vivenciou a inusitada satisfação de ser vista e ouvida com um interesse humano verdadeiro e não apenas por "dever profissional ou boa educação". Eu nunca trataria de alguém que me inspirasse apenas, um dever profissional. Preferiria encontrar um colega que me substituísse.
Ela foi descobrindo a importância de seus sentimentos e se descobrindo, como um ser criado por Deus, merecedora de cuidar de suas emoções mais secretas, mesmo daquelas que talvez não a orgulhassem, para poder cultivar sem medo, aquele imenso potencial de amor tão represado...
D. Neusa foi "buscando sua canção", como eu costumo dizer a meus pacientes de câncer - e seus familiares foram aprendendo a conhecer melhor, àquela mãe e esposa, da qual aprenderam a ser "mais amigos".
Hoje ela já não precisa de mim, enquanto terapeuta. Mas me telefona eventualmente, manda-me lindos cartões por ela mesma pintados e comenta sempre, cheia de satisfação, que "seus dois anos já são cinco", mais bem vividos do que foram os quase cinquenta anteriores.
E eu agradeço a Deus, pelo privilégio de também estar viva e de poder ser útil.
Se puder ser útil a voce também, meu telefone é (11)3885.3514 e meu e-mail está igualmente à sua disposição.
Mª Antonieta de Castro Sá
Psicóloga e escritora.
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