Ensaio Sobre o Ensaio - Parte I
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Autor Isabela Bisconcini
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 10/10/2008 12:59:01
Que estas palavras possam abrir brechas de entendimento, possam servir de trampolim para vôos mais amplos, trazendo a luz da compreensão e o calor do coração.
Escrever é um prazer e um desafio ao mesmo tempo. Gosto de escrever sobre filmes, pois são um vasto manancial de imagens, metáforas e símbolos úteis para a experiência de estar vivo. Filme, tal qual bebida, só se sabe se é bom no dia seguinte: a bebida por não se lembrar dela e o filme por ser lembrado. Depois de dormir com ele, temos o efeito matinal de tê-lo visto. E melhor o filme, quanto mais ele perdura em nós; quando a lembrança e reflexão prosseguem mesmo muito tempo depois de visto. Tenho escrito sobre alguns filmes a partir de uma perspectiva budista. Assisti ao filme Ensaio Sobre a Cegueira de Fernando Meirelles, baseado no livro de José Saramago e ensaio alguns passos nessa dança.
O filme retrata uma situação de epidemia onde todos são subitamente atingidos por uma cegueira. Para além do que já foi dito, e bem dito por sinal, não me interessa tanto o fato do que uma epidemia pode deflagrar, pode fazer surgir no ser humano, em tom apocalíptico, ou de Juízo Final, como já disse Contardo Calligaris, na Folha de 18/09. Meu olhar foi mais na linha da cegueira que continuamente ocorre. Em todas as religiões, a metáfora da Luz para a Presença Divina, e da Iluminação como estado de Ser – estado de consciência - onde se percebe as situações como realmente são, sempre foi a expressão mais eficiente, A metáfora por excelência. No Budismo falamos sobre a Correta Visão da Realidade. E por visão aqui nos referimos à apreensão, à percepção inequívoca da Realidade Absoluta, a Realidade Última dos fenômenos, experiência da consciência e de todos os sentidos, não só da visão; mas usamos como apoio sempre a imagem da visão. Esta experiência é como alcançar (ter a realização de) uma Verdade Fundamental, a que os Cristãos chamam Deus. Quando ouvimos ensinamentos sobre esta experiência, imediatamente percebemos que o local da onde a pessoa fala, ou seja, o que ela vê e narra de onde fala, é uma experiência que não temos; uma visão que não conhecemos. Com todos os Santos é igual. Ou seja, o que esta pessoa vê como conseqüência do local (interno) onde ela está é que é diferente do que vemos e de onde estamos. Quando Jesus disse "perdoai-lhes Pai, eles não sabem o que fazem", esta é uma imagem de cegueira. E ver e saber sempre foram sinônimos, metafórica e simbolicamente falando. Assim, a Águia e o seu olhar é o símbolo da percepção imediata da Realidade, da visão da Realidade Última, a percepção do Espírito por excelência: "a águia olha o sol bem de frente, sem temor, escreveu Angelus Silesius, e tu, o esplendor eterno, se teu coração for puro. O Sol que só ela ousa olhar sem queimar os olhos" - in Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier. Ela simboliza a percepção direta da Luz espiritual superior, que vem como um clarão, a percepção solar, enquanto que a Coruja sempre foi "um símbolo do conhecimento racional - percepção da luz (lunar) por reflexo – em oposição ao conhecimento intuitivo – percepção direta da luz (solar)". "A coruja, ave de Atena, simboliza a reflexão que domina as trevas". "Simboliza o dom de clarividência dos adivinhos, através dos signos por eles interpretados"- in Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier. Enxerga por conseguir discernir através da luz da lua (luz refletida), por conseguir adentrar os meandros e nuances, onde em princípio não se conseguiria enxergar nada, tal qual a intrincada floresta do raciocino lógico; ou seja, é a visão noturna, a partir do nosso ponto de vista, do ponto de vista da dualidade; do crepúsculo do ser encarnado. Verdade seja dita, enxergar de noite é necessidade absoluta nos tempos em que vivemos, pois a imagem da treva, da falta de noção total do que tange ao espírito, daquilo que toca a essência, é de extrema angústia e não foi por acaso que São João da Cruz usou a expressão da Noite Escura da Alma, ao se referir à agonia e extremo desespero pelo qual a alma passa, enquanto atravessa esta jornada. Portanto, tudo aquilo que consegue amenizar a escuridão: a luz da lamparina do sábio (que simboliza a luz e o calor do coração) que clareia os próximos passos, o olhar profundo da coruja, que atravessa a escuridão, vêm como bênçãos. É verdade que a Cegueira de Saramago e de Fernando Meirelles é branca, é uma treva às avessas, e falarei disso mais prá frente, mas a condição de não se enxergar nada, é uma metáfora da mente encapsulada, da mente dormente e não desperta, da mente não iluminada.
Verdade que Saramago coloca esta epidemia como algo que aparece sem sabermos de onde vem, e verdade que ele expressa através desta metáfora que "nossa sociedade está doente" e sofre em decorrência deste adoecimento. Neste sentido, ele é primoroso e cada vez que vejo as situações que nos cercam e nos aturdem cotidianamente, me lembro dele e penso "puxa, é isso, como estamos coletivamente doentes e numa cegueira total!" Como imperam o salve-se quem puder, as relações de abuso, de tirania, de dominação, de total falta de noção do que se está fazendo e das conseqüências catastróficas e horrorosas que geramos por causa disso.
Mas ainda que a percepção mais evidente do filme seja a retratação da doença coletiva pela qual nossa sociedade está passando, é possível compreender também a situação não como circunstancial, mas de uma forma mais abrangente: do ponto de vista Budista, esta doença, esta cegueira é mais congênita e menos epidêmica, menos acidental ou circunstancial, no sentido em que vemos ali o Samsara: a cadeia cíclica de sofrimento gerada pelo efeito de ações baseadas na ignorância. A ignorância básica existencial da percepção de quem somos de fato e da verdadeira natureza da nossa própria mente. Para esta dimensão de nós mesmos, somos absolutamente cegos. Coletivamente cegos. Existencialmente cegos
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Isabela Bisconcini é Psicóloga Clínica e Consteladora Sistêmica. Terapeuta EMDR. Terapeuta Floral, Reiki II, NgalSo Chagwang Reiki, AURA-SOMA. Deeksha Giver. Dedicou-se por 25 anos ao estudo da psicologia budista e prática do Budismo Tibetano. Participou do Centro de Dharma da Paz desde 1988, quando Lama Gangchen Rinpoche o fundou. E-mail: [email protected] | Mais artigos. Saiba mais sobre você! Descubra sobre Autoconhecimento clicando aqui. |