O SANFONEIRO
Autor Hellen Katiuscia de Sá
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 10/9/2005 11:37:46 AM
Alguns anos atrás, estava num ônibus vindo ou indo para algum lugar do centro de minha cidade; não lembro bem o destino final, mesmo porque isso não importa muito. Importa uma cena que se desenrolou dentro do coletivo que até hoje não me sai da cabeça.
Era uma coisa simples. Um senhor meio alto e forte, de pele negra, com um semblante dócil e justo tinha entrado no coletivo juntamente com uma moça (deduzi que fosse sua filha); era ela a responsável por arrecadar os trocados que os usuários do transporte davam ao senhor em troca de sua música. Este senhor portava uma bela e enorme sanfona com as extremidades cor vermelho-metálico. Um belo e difícil instrumento para se aprender a tocar, fiquei imaginando, mesmo porque o senhor não enxergava. Começou a tocar sua melodia leve e alegre.
E de repente, o interior do coletivo se enchera de vida. A melodia que o sanfoneiro tocava era tão linda e invadia o interior do transporte coletivo sem pedir licença aos usuários. E no final de uns três minutos todos estavam embalados e sonhadores. E a moça ia passando uma caixinha para arrecadar os trocados.
No final da arrecadação ela entregou ao sanfoneiro e este rapidamente passou os dedos sobre as moedas e cédulas e se entristeceu um pouco; parou de tocar. Notei que os usuários gostaram da música dele, mas não lhe deram quase nenhum trocado. Eu também não pude dar-lhe nenhum trocado, mesmo porque estava somente com o dinheiro da condução. Dificilmente saio com dinheiro em punho. Acho que é mania minha...
Algo semelhante acontecera outra vez mas foi um moço deficiente mental que adentrara no coletivo em busca de alguns trocados. Lembro-me que eu segurava um sonho-de-valsa nas mãos e ofereci o doce a ele. O homem me olhou com um sorriso comovido de agradecimento no rosto; pude até “ouvir” seu pensamento como se pela primeira vez alguém lhe tivesse sido afável. Ele fez um gesto com as mãos se eu tinha dinheiro (ele não falava); disse que não, mesmo assim ele seguiu feliz com seu doce. Nunca mais esqueci de seu rostinho feliz como se tivesse recebido o mais caro dos presentes em toda sua vida.
Mas infelizmente não acontecera o mesmo com o sanfoneiro cego. Ele saiu do ônibus triste, não porque não havia recebido mais trocados e sim achando que as pessoas não tinham gostado de sua música. Pois pela lógica, quando gostamos de algo, cuidamos e damos atenção a isso e no caso do sanfoneiro o único medidor que ele tinha era a quantidade de moedas arrecadadas.
E quando o músico desceu do coletivo, o interior ônibus ficou sem ânimo novamente e as pessoas rapidamente sentiram saudades do sanfoneiro, retomaram seu semblante duas vezes tristonhos, compreenderam que se dessem uns trocadinhos (que não lhes fariam muita falta) o senhor continuaria com sua melodia embalando e emanando um pouco de alegria a todos durante a viagem.
Do mesmo modo acontece na vida. Uma pessoa ou uma ocasião nos convida a sentir algo radiante e inspirador e mesmo assim não lhe damos atenção ou crédito. O que importa é o alimento sólido. As pessoas fazem regime do alimento da alma apesar de que às vezes esse comportamento é necessário... Mas lá adiante haverá essa lembrança de perda da oportunidade e o aprendizado de que na próxima vez devemos aceitar os presentes que a vida nos oferta, mesmo que seja uma música tocada por um sanfoneiro dentro de um ônibus.
Hellen Katiuscia de Sá
01 de outubro de 2005
Texto revisado por Cris
Avaliação: 5 | Votos: 3
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