OFERECER É DESEJAR
Autor Claudette Grazziotin
Assunto AutoconhecimentoAtualizado em 30/12/2009 18:16:08
Um texto do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1907-2009)
OFERECER É DESEJAR
Claude Lévi-Strauss
A história das prendas (étrennes) é ao mesmo tempo
simples e complicada. Simples, se nos limitamos a entender o sentido
geral do costume; para compreendê-la, basta sem duvida lembrar-se da
formula usada no ano novo japonês: Fora demônios, que entre a sorte.
(O-niwa soto-fuku wa uchi). Como o ano antigo deve levar junto no seu
desaparecimento a má sorte, também a riqueza e a felicidade de um dia
são um presságio e quase uma conjuração mágica, para que o ano novo
tenha os mesmos tons das cores desse dia. Deste ponto de vista, a
formula japonesa corresponde às que Ovídio usa quando ele descreve, no
primeiro livro dos Fastos, os costumes romanos da festa de Janus, que
se tornou nosso primeiro de janeiro, bem que durante muito tempo e
mesmo em Roma, esta data fosse apenas o inicio do ano. "O que
significam, pergunta o poeta a Janus, as tâmaras, figos secos e o mel
claro oferecido em um vaso branco?" E o Deus responde: "É um
presságio: se deseja que os acontecimentos tenham este gosto..."
Ovídio conta também que no primeiro do ano, os comerciantes se
limitavam a deixar por um pequeno tempo suas lojas abertas para fazer
algumas transações comerciais que dariam bons augúrios aos negócios
durante todo o ano. O francês curiosamente manteve esta tradição, a
invertendo, no uso do verbo "étrenner" que quer dizer, para o
comerciante, fazer sua primeira venda do ano.
É mais difícil de retraçar a origem precisa do
costume das prendas no mundo ocidental. Os druidas, dos antigos
Celtas, realizavam a cerimônia na época que corresponde ao 1º de
janeiro; eles cortavam o visgo (gui) dos carvalhos, considerado como
uma planta mágica e protetora, e o distribuíam a população. Daí que o
nome de prendas em algumas regiões da França, até há pouco tempo
atrás: visgo do ano-novo (gui-à-lan-neuf), às vezes, transformado em
aguignette. Em Roma, a segunda quinzena de dezembro e o inicio do mês
de janeiro eram marcados por festas durante as quais se trocava
presentes, que eram sobretudo de dois tipos: velas de cera (que
transferimos para nossas arvores de Natal) e bonecas de argila ou de
massa comestível, que se dava às crianças. Havia também outros
presentes, que Martial detalha longamente em seus epigramas; a crônica
romana narra que os nobres recebiam presentes de seus clientes, e os
imperadores, de seus cidadãos. Calígula recebia pessoalmente os
presentes, ficando o dia todo no vestíbulo do palácio.
Costumes pagãos e ritos romanos: parece que os presentes de ano novo
preservaram durante muito tempo o resquício desta dupla origem. Como
compreender, de outra forma, que durante toda a Idade Média, a Igreja
tenha se esforçado em vão em aboli-los, como se fossem uma
sobrevivência bárbara? Mas nesta época, os presentes não eram somente
uma homenagem periódica dos camponeses a seus senhores, sob forma de
frango, queijo fresco e frutos em conserva; ou oferendas simbólicas:
laranja ou limão picados com cravos que se suspendia, como
encantamentos, sobre as jarras de vinho para impedi-lo de azedar, ou
ainda noz moscada enrolada em papel dourado. Eles pertenciam a um
conjunto mais vasto dos quais, em algumas regiões da Europa, o gado
não estava excluído já que lhe faziam oferendas de fumarada de zimbro
e de aspersão de urina. Tais como nós as conservamos hoje, as prendas,
estão longe de ser um vestígio destes costumes populares, mas talvez -
como ocorre freqüentemente com costumes modernos - sejam o resultado
da democratização de um rito dos nobres (...). Na Inglaterra, a Rainha
Elisabete 1ª contava com as prendas para renovar sua carteira e seu
guarda-roupa: os bispos e os arcebispos lhe davam 10 a 40 libras cada
um; os senhores: vestidos, saiotes, meias de seda, ligas, casacas,
casacos e peles; e seus médicos e boticários: presentes como cofres
preciosos, potes de gengibre e de flores de laranjeira, e outros doces
secos. Durante o Renascimento europeu, os alfinetes de metal se
tornaram um presente favorito para as prendas, pois era uma grande
novidade: até o século XV, as mulheres serviam-se apenas de fechos de
madeira para segurar seus vestidos. Quanto aos cartões de ano novo,
ornamentadas de iniciais e imagens, se sabe do seu uso da Europa ao
Japão. "Some in golden letters write their love" (Alguns escrevem em
letras douradas seu amor), escreve um poeta inglês do século XVII. Na
França, os cartões ilustrados de ano novo estiveram em voga até a
Revolução.
Para compreender a persistência e a generalização das prendas, é
necessário sem duvida, além do senso comum, atingir o sentido profundo
da instituição. "A maneira de dar vale mais do que o que se dá", se
diz em francês e todas as sociedades, selvagens ou civilizadas,
parecem ter sido penetradas pela convicção que é melhor adquirir para
o outro que para si e por si, como se um valor suplementar se juntasse
ao objeto, apenas pelo fato que as pessoas o receberam - ou ofereceram
- como presente. Os indígenas maoris da Nova Zelândia tinham fundado
toda uma teoria sobre esta constatação: segundo eles, uma forma
mágica, que eles chamavam hau, se introduzia no presente e ligava para
sempre o doador ao donatário. Do outro lado do mundo, a lenda romana
das prendas parece inspirada de uma idéia próxima dessa. As primeiras
prendas teriam sido aquelas ofertas sob a forma de ramos verdes ao rei
sabino2 Tatius, que dividia a soberania com Romulus. Estas folhagens
tinham sido cortadas no bosque sagrado da deusa Strenia, daí o nome
latino das prendas: strenae. Ora, Strenia era a deusa da força. Para
os latinos como para os Maoris, os presentes são o objeto que têm de
sua natureza de presente uma força particular. De onde ela vem? Se
obrigando, em certo período do ano, a receber de outros bens dos quais
o valor é freqüentemente simbólico, os membros do grupo social trazem
à luz a essência mesma da vida coletiva que consiste, como na troca de
presentes, em uma interdependência livremente consentida. Não
ironizemos então sobre esta grande feira anual onde as flores, os
bombons, as gravatas e os pacotes ilustrados apenas trocam de mão;
pois nesta ocasião e por estes simples meios, a sociedade todo inteira
toma consciência de sua natureza: a mutualidade.
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