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A Criança Ferida

Atualizado dia 10/10/2017 6:19:33 PM em Psicologia
por Paulo Rubens Nascimento Sousa


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Sou terapeuta há mais de 20 anos e confesso a vocês que tudo o que trato no adulto de hoje são as memórias da criança de ontem, pedindo passagem para falar através de um sintoma, um comportamento, uma dor, um incômodo. Tenho ouvido muitos relatos, de sofrimento, de libertação e cura.
Vou começar por uma linda história de uma mulher que veio para a cura de uma alergia que o médico vinha tratando por 20 anos, e a encaminhou para terapia. E em nossa escuta, percebemos em sua “doçura e empatia às pessoas” que “os estados alérgicos” eram a forma que ela tinha para lidar com toda a exigência afetiva que ela movimentava, mas ao preço daquelas erupções de pele. Ao longo da jornada terapêutica descobrimos que aquelas “feridas”, lesões na pele que ela formava, eram a maneira que a mente encontrava para viver o contrário de seu comportamento habitual, a afetividade e a solicitude com a qual ela se relacionava com as pessoas e que para sua criança isso seria permissividade, logo, a única forma de manter as pessoas longe de sua solicitude e empatia era através daquelas lesões feias de pele.
Depois disto, ela teve um processo de reconciliação com alguns de seus aspectos interiores, personagens e conteúdos internos. Aquela criança certa feita olha pra mim em uma sessão e diz: “como é ser uma mulher de 60 anos? Ou como deve ser uma mulher de 60 anos?”. Eu lhe respondi, com outra pergunta: “como você se sente?”. E ela me diz: “como uma menina de 12 anos, agora livre, gostando de ser mulher, querendo viver e voar nesta nova fase da vida”.

Outra feita, uma adolescente veio a mim acometida de grande sofrimento, e se debatia, cortava-se toda, mutilava-se, e já havia tentado suicídio várias vezes. Começamos um processo e caminhamos bem de lá pra cá. E hoje, com mais autonomia, conseguimos olhar para aquela criança em terapia, e tirarmos o melhor entendimento de situações que vem melhorando com o entendimento, e que reconhece suas raízes no desespero infantil que sentia ainda na tenra idade de perder os pais pela ruptura afetiva dos dois, envolvidos em conflitos e agressões domésticas que ela vivia como filha mais nova e vulnerável pela idade. Seu principal sintoma era uma depressão profunda, um vazio. Vivia com a mãe num mundo de boneca, mas completamente vazia, e amedrontada. Não conseguia ver à primeira vista, mas quem se debatia histérica e desesperada ainda era aquela criança torturada pela crise dos pais, buscando ser escutada através da loucura que lhe extraviara. Aquele mesmo grito de loucura se manifestava em sua negação pela vida em seus surtos borderlines, pelo pavor de enfrentar a vida, por sua fraqueza e não pertencimento. Esse ente, sem rosto, sem pertencer, revira-se dentro dela com um terrível medo da rejeição social de não encontrar um lugar ou um alguém a quem pertencer.

Outro caso parecido me fez pensar agora no que vou chamar de complexo de Perséfone, a filha de Deméter da mitologia grega, que é alienada do amor da mãe, vivendo de forma lânguida com seu esposo Hades - simbologias para nos falar de situações padrões da vida humana. O mito de Perséfone reflete o desequilíbrio de uma mãe excessiva e abusiva na vida da filha, desequilíbrio que acaba por se manifestar em um processo de autonegação da filha, que vem a apresentar transtornos alimentares, dismorfias corporais, dentre outros problemas oriundos desta distorção de identidade, de referência de seu lugar afetivo no mundo. 
Esta era uma moça de 14 anos que havia perdido o pai afetivo. Ela tinha perdido o pai biológico para a separação conjugal, e o primeiro pai afetivo, e havia se apegado muito ao segundo pai afetivo. Nutria por ele uma adoração, quase uma projeção platônica. Por fim, sua mãe e o segundo pai afetivo romperam, o casal se desfez. E ele e sua família negaram a existência e o laço com aquela filha afetiva, e ela caiu em profundo sofrimento e perturbação mental, com tentativas suicidas e quadros de anorexia severos inspirando cuidados médicos. Este era um caso de uma mãe que teve uma história afetiva de muitos companheiros e de cada um deles ela tinha um filho. Esta era a moça mais velha, mas os outros filhos também apresentavam problemas como era o caso da outra menina do meio, que era gordinha, fora do peso, e tinha depressão por isso, e era acometida de bulimia e anorexia. O menino mais novo enfrentava dificuldade com a formação do papel masculino, vivendo uma crise de identidade já na tenra idade.

Podemos, assim, perceber a importância da nossa formação infantil e da cura de nossa criança interior, que pede socorro muitas vezes através de orientação de vida, do domínio de uma potência, de um processo de significação do que ficou pra trás e não se resolveu, e que pede os cuidados e a atenção deste adulto que ela se tornou. Eu vi nos processos de alienação parental, em situações de ruptura dos pais, processos de manifestação de dor e desespero na criança, onde ela, ainda em tenra idade de 1, 2 anos, manifesta surtos de autoagressão, por não conseguir se comunicar ou falar com seus pais, fazer-lhes entendê-lo frente àquela situação. E por não terem domínio do corpo, da linguagem, se expressam se auto agredindo pelo desespero de querer se comunicar, de dizer “eu estou aqui”, e ser negado. Nossas experiências infantis vão formar o que chamamos de padrões de crença, que é o que vamos acreditar a respeito da vida, do amor, das pessoas. E com este conteúdo interior que carregamos dentro de nós vamos fazer as nossas escolhas de vida, ou não fazê-las ou ainda, sintomatizá-las em alguma mazela da mente ou do corpo.
Vamos olhar para a criança que fomos e ampará-la, ouvi-la, cuidá-la, e assim podermos dar passagem a um adulto melhor resolvido com as questões da vida, do cotidiano. E vamos cuidar e zelar pela integridade da infância de nossas crianças sendo melhores pais, melhores adultos com elas. Esta criança de hoje será o adulto de amanhã, que poderá ser fruto da bênção do amor ou dos infortúnios do amor, que vamos ver na violência, no suicídio e tantas outras formas de sofrimento.

Originalmente publicado em: https://www.equilibriocdh.com.br/2858/a-crianca-ferida/

 

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Conteúdo desenvolvido por: Paulo Rubens Nascimento Sousa   
PSICOTERAPEUTA JUNGUIANO, ATUA COM HOMEOPATIA, TERAPIA FLORAL E FITOTERAPIA. PROFESSIONAL E SELF COACHING
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