De nada, também, se morre
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Autor Celso A. Cavalheiro
Assunto PsicologiaAtualizado em 30/04/2011 22:13:32
Aos poucos minhas forças pareciam se esgotar. Minha alegria natural e minha vontade de vida, iam sendo substituídas por um desânimo e um cansaço que não me abandonavam mais. Muitas vezes, erguer a cabeça do travesseiro, pela manhã, era um ato de bravura e de força física. As dificuldades se amontoavam. O mundo parecia haver parad. O mais debilitante, no entanto, vinha dos lentos minutos contados no relógio durante um dia lânguido e sem graça. De todos os lugares, vinham ameaças, prenúncios de tristeza e desesperança.
Com um coração enlouquecido, que às vezes desabalava em corrida de 180 batimentos por minuto, para logo em seguida se estatelar de fraqueza a 40, ou menos, batimentos em tempo igual; fui vendo a vida se escapar de mim. No principio, não percebia que estava doente, pois meu médico nada achava de relevante em meus exames. Com intervalos curtos de bem estar, fui vivendo mês após mês - até que, um belo dia, as forças resolveram me abandonar. Meu médico disse, literalmente, que o meu caso não era mais para ele, e me encaminhou a um centro maior.
Uma multidão entupia o corredor do hospital. O atendente nos disse, sem muito rodeio, que havia ali pessoas que esperavam há quase quinze dias e que, talvez, esse fosse o meu destino; vir e esperar, se meu coração conseguisse aguentar, é claro. Sentei-me em um daqueles bancos e fiquei a olhar o vazio.
Às cinco horas, os corredores se esvaziaram. Lá ficamos nós, como a esperar um milagre. Um rapaz que trabalhava no serviço burocrático, de repente, sugeriu que déssemos uma volta e depois voltássemos para falar com ele. Disse que os leitos que vagavam, no fim da tarde, ficavam disponíveis só no outro dia pela manhã, mas que talvez pudesse me ajudar.
A prateleiras de livros e revistas no supermercado ali perto, pareciam vir de encontro a mim e fugir novamente, enquanto eu me esforçava por manter o equilíbrio e a esperança. Não tinha medo de nada; tinha tontura e cansaço.
O atendente foi rápido. Quando voltamos, disse-nos para ocupar um leito vazio em um determinado quarto. Deveríamos entrar, sem grandes alardes, e esperar pelo atendimento. Disse-nos que retirássemos as roupas sujas da cama e que eu deitasse assim mesmo. Era uma esperança.
Dentro do quarto, com mais quatro pessoas, eu imediatamente comecei a me sentir mais forte. Queria agradecer aquele moço da portaria, mas já não o veria mais. Em poucos minutos, já sabíamos o quadro clínico dos meus companheiros de quarto: havia um homem com AIDS, aos pés da minha cama, que fitava o teto como se quisesse desencarnar antes do tempo, visivelmente nervoso. Outro do meu lado direito parecia ter problemas mentais; a sogra, que o cuidava com desvelo, disse que aquilo era fruto de um erro médico. O outro rapaz, jovem e atlético, parecia completamente saudável. Olhava fixamente para um livro aberto como se não houvesse nada mais no mundo para ver. Porém, jamais o folhava. Tinha uma bactéria alojada na entrada do coração, segundo ele, e iria por uma válvula metálica no lugar da infectada. O último companheiro de quarto era um homem também jovem que não titubeou em dizer que tinha um problema de coração incurável e que estava esperando para morrer. Só deitava quando a enfermeira chegava para lhe dar medicamento e depois ficava na janela fitando o horizonte; parecia esperar alguém.
Quando me perguntaram o que eu tinha; eu, por um instante, não sabia o que dizer. "Ele veio fazer um cateterismo," disse minha esposa. A enfermeira entrou, admirou-se com minha presença ali e foi buscar lençóis.
Quando o dia amanheceu, eu era outra pessoa. Estava me sentindo bem, mas culpado por ver minha esposa ter passado a noite jogada no chão ao meu lado. Tinha certo desconforto, também, por estar ali com aquelas pessoas que me pareciam muito doentes enquanto eu parecia não ter mais nada.
Meu companheiros, os mais "saudáveis", fugiam para um quarto vazio no fundo do corredor durante a tarde, e ali jogavam cartas, fumavam e riam, enquanto eu, timidamente, espiava pela porta para ver se alguém se aproximava. Acho que o pessoal do hospital sabia o que estava acontecendo. Eu de minha parte, fazia, também, incursões diárias em outras alas do hospital, tomava coca-cola, ia para o pátio e ficava olhando as pessoas. Não sentia mais nada.
Na sala de cirurgia, deitado na maca, ouvia, pacientemente, o doutor dizer que aquele era um exame de risco e que a cada mil pacientes um morria. "Não te assustes, dizia ele, ontem morreu um, portanto, tu estás fora da estatística." "Eu acho que tu não tens nada," acrescentou. "Deixe-me ir," argumentei. "Não", disse ele. "Já que estás aqui, vamos até o fim."
O pequeno corte na perna me doía. Insisti com o médico que parecia não acreditar. Enquanto a enfermeira fingia me anestesiar, ele desconversava, ou melhor, falava qualquer coisa sem importância. Com minha insistência, decidiu verdadeiramente aumentar a dose do anestésico.
Movimentos mais bruscos do médico com o cateter em minha perna, me levaram a questioná-lo, pois, ele me parecia nervoso. "Você está sentindo alguma coisa," me perguntava ele. Parecia irritado. "Não", respondi. O médico se afastou do meu campo de visão e a enfermeira o acompanhou. Juro que ele me parecia tenso. Quando voltou para perto de mim disse: "qualquer coisa que você sentir me avisa." Percebi que alguma coisa não ia bem. De repente, o médico começou a fazer um movimento como quem está desentupindo um cano de esgoto, ou coisa parecida. Confesso que pela primeira vez tive medo De repente, o médico começou a me perguntar nervosamente: "você está sentindo alguma coisa?" "Como é o seu nome?" "Quantos dedos você vê aqui?" mostrando-me a mão. Eu, ainda, sabia meu nome e contava muito bem até cinco, felizmente.
A televisão pendurada no teto mostrava meu coração, veias e artérias cheias de contraste que desaparecia quando eu tossia. "Você não tem nada no coração, mas podia ter ficado aqui." disse o médico. Será que seu médico particular não consegue distinguir um problema cardíaco de um estresse?"
Nunca me preocupei em responder essa pergunta. Não tenho competência para fazer esse tipo de julgamento. Conformei-me, no entanto, em aprender minha própria lição: Olhar ao meu redor e ver que sempre há aqueles cuja dor e sofrimento são maiores que o nosso e, que, nem sempre, nossas mazelas são tão consistentes como parecem. É preciso erguer a cabeça e olhar além de nosso umbigo, descobrir a nossa força interior, a nossa capacidade de cura. Deixarmos de ter pena de nós mesmos e estender a mão a quem de nós necessita. Muitos de nossos sofrimentos são fruto de nossa mente cansada e mal cuidada; da nossa incompetência em lidarmos com a vida e de nossa fragilidade diante dos desafios que ela nos impõe. Sucumbimos com extrema facilidade e somos rápidos demais em culpar os outros por nossos infortúnios. Infligimos em nós mesmos, consciente ou inconscientemente, traumas e recalques só para pousarmos de vítimas diante do mundo.
Longos anos são passados, mas não esqueci minha lição. As palavras do médico ainda soam frescas aos meus ouvidos: "Vai e não esquece: de nada, também, se morre."
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