Quando o medo se fez presente




Autor Renata Kindle
Assunto PsicologiaAtualizado em 08/10/2014 14:09:59
Certa vez passei por uma situação muito esquisita, muito mesmo! Pouquíssimas pessoas sabem sobre esse episódio, mas resolvi compartilhá-la com mais pessoas, com você. A idéia de dividir esse caso veio quando estava selecionando meus textos, quis que outras pessoas, como você que me lê, por exemplo, tivessem a certeza de que somos de carne e osso e que não estamos imunes a essas sensações e emoções, e que elas surgem sem a nossa permissão ou intenção.
Bem, havia sido um dia muito esquisito. Muito mesmo! Por sorte (?) eu não estava tão sozinha. Havia alguém muito especial, um amigo a quem admiro e amo com todo o meu coração estava por perto e me estendeu a mão. Não pensei dois segundos, agarrei-me a ela.
Eu já havia sido expectadora das mais diversas experiências de medo, mas esses “medos” não eram exatamente meus, mesmo que eu os pudesse sentir, era “de tabela”. Eles estavam relacionados ao medos de outras pessoas, em situações de doenças, de perdas, de desconhecido, de mudanças, enfim. Eu observava de fora, mas ainda assim, era possível sentir o cheiro do medo (sim, o medo tem cheiro). Porém, nas situações de extremo, de luta pela vida, por exemplo, trazem em si uma condição específica e o medo é o primeiro que se manifesta. Infelizmente o Ocidente não absorve a morte como algo inerente ao ser vivente, não a concebe como algo natural, como passagem, como libertação. Deveríamos aprender mais com os orientais.
Entretanto, naquela noite eu fui pega pelo tornozelo e realmente tive muito medo. Não era medo de morrer, esse eu não tenho; ao contrário, até penso que morrer não deva ser difícil e que deve ser um momento particularmente preenchido de muita paz, sem dor, sem sofrimento, mesmo para aqueles que morrem soterrados. Penso que o tiro dói quando penetra o corpo, a facada, o infarto, tudo isso deve causar muita dor sim, mas o exato momento da morte, aquele único instante em que a alma abandona o corpo, esse eu acredito ser indolor.
Então, que medo era aquele que eu sentia tão fortemente? Medo. Simplesmente medo. Nunca tinha sentido coisa tão forte e arrebatadora.
Medo do bicho papão? Do escuro? Medo de sofrer? Não, definitivamente não era nada disso. Mas medo do desamparo. Demorei muito para chegar a essa conclusão. Senti medo do desamparo... Não era medo de solidão, com ela, lido bem e às vezes até necessito dela. Mas medo do desamparo e falo aqui do desamparo da alma.
Acontece que esse medo veio cheio de acessórios, não veio sozinho. Dele, derivavam medos secundários, tais como o de perder, seja o controle, sejam as pessoas queridas, seja lá o que fosse.
Sou uma pessoa que busca se aprimorar em tudo o que pensa e faz. Eu tento, a cada dia estar em conexão com a minha parte mais íntima, ao mesmo tempo que procuro sentir minha conexão com o Deus no qual acredito. Porém, naquela noite, por alguma razão que realmente desconheço (ou que não me foi permitido conhecer) o medo veio como geleira em avalanche, não deu pra segurar. Eu sempre tive medo de ter medo e agora, relendo e reescrevendo este texto, creio que eu não tenha mudado muito, continuo tendo medo de ter medo.
Enganosamente acreditava que isso fosse coisa das mentes pequenas (não inferiores), sempre me considerei capaz de lidar com qualquer situação que se interpusesse em meu caminho. Ledo engano! Realmente senti medo e isso é muito ruim. É ruim, antes de tudo, por se tratar de uma emoção imobilizante e pegajosa mas é ruim também e principalmente porque o medo nos torna diminutos demais diante de tudo. Com isso, passamos a ver as coisas por um prisma sombrio.
Porém, o medo é fértil e produz coisas malucas e pesadas de se lidar. Imaginam-se coisas absurdas que não há como se tornarem reais mas imaginam-se também coisas desagradáveis e é possível sentir seus efeitos com muita força e violência. É impossível ter o controle absoluto, é mais que mera ilusão ou apego do nosso ego. Como me disse aquele amigo, "é como tentar segurar a água nas mãos"! E ele estava certo!
Mas o escuro, o desconhecido... esses são assustadores quando já se está com medo. Sim, ele é fértil, ele se reproduz e ele cresce rapidamente. Porém, a tentativa de brecá-lo nos faz andar em círculos por horas e horas. O cansaço é físico, como depois de uma corrida de muitos quilômetros.
O refresco chegou com a história do sobrinho desse meu amigo. Como ele, à época, criança bem pequena, eu queria ter a certeza de que o que pudesse haver de "pior no escuro" fosse justamente aquele em quem eu pudesse confiar, em quem eu pudesse recostar minha cabeça e dormir tranquila e serenamente. Lembro-me de que quando ouvi o caso sobre esse sobrinho, lembrei-me de outra, semelhante à confiança e entrega ao desconhecido. Uma estória velha conhecida de todos, sobre um barco que navegava em mar revolto, durante uma forte tempestade. Os marujos, aterrorizados, corriam de um lado pro outro buscando se salvar e deparam com um menino brincando tranquilamente. Um deles lhe pergunta: menino, estamos correndo perigo; você não está com medo? E a resposta: não, é o meu pai quem está no leme! Pois é, eu tratei de encontrar essa certeza desses dois meninos.
Quando entendi que o medo que eu sentia era o de enfrentar sozinha o monstro que mora no escuro que somos por dentro e que ele pode ser grande demais, aí não houve melhor amparo para meu desamparo que aquele conforto e proteção gratuitamente oferecido. Obrigada, “Tio Digo”!
O medo é a jaula da alma, mas sabendo lidar com ele, podemos atravessar pontes, cruzar estradas e seguir nosso caminho. Essa caminhada não tem uma linha de chegada, o aprendizado está em todo o percurso, em cada desvio, atalho, buraco. Em cada passo, em cada tombo, em cada tropeção. O que importa é nosso aprimoramento como pessoa e esse aprimoramento só é possível quando nos colocamos disponíveis no caminho do auto-conhecimento.









Psicóloga clínica e hospitalar (crianças, adolescentes, adultos, casais e família); autora de alguns textos e artigos. Desenvolvedora de um trabalho piloto sobre a atuação das emoções no corpo físico, que se realiza com grupos de oficinas terapêuticas. E-mail: [email protected] | Mais artigos. Saiba mais sobre você! Descubra sobre Psicologia clicando aqui. |