Sofrimento Hoje
Atualizado dia 8/5/2018 6:57:13 PM em Psicologiapor fatima bittencourt
A investigação histórica, filosófica e clínica norteia os questionamentos e ponderações acerca da forma como tratamos nosso sofrimento e o do outro e de como o DSM-5, a mais recente edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana, encapsula uma abordagem restritiva ao definir as patologias a partir dos resultados obtidos pela ação dos remédios. Seriam as epidemias citadas acima mero resultado de déficits individuais e distúrbios neuroquímicos? Ou elas estariam dando pistas de nossas formas de viver e de nos relacionar? Esta última tem sido o argumento de pensadores como o sociólogo francês Alain Ehrenberg. Os adoecimentos psíquicos estariam denunciando impasses e descontentamentos dos sujeitos com o mundo contemporâneo.
Falar em patologias do social não refere a uma sociedade adoecida ou que deixou de ser saudável. São patologias de cada sujeito, que têm em comum serem forjadas a partir dos complexos entrelaçamentos com a sociedade. Em 1930, em O Mal-estar na Civilização, Freud demonstrou os conflitos inevitáveis da vida em civilização e as pressões trazidas pela cultura frente aos desejos humanos. Pode não parecer, mas as patologias têm papel fundamental na socialização. Vladimir Safatle pontua: "Socializamos sujeitos, entre outras coisas, ao fazer com que eles internalizem modos de inscrever seus sofrimentos, seus 'desvios' e descontentamentos em quadros clínicos socialmente reconhecidos".
Com a formatação do sofrimento a partir dos sintomas descritos no DSM-5, algumas patologias já não são mais validadas. As histéricas e os paranóicos de outrora não entram no discurso, enquanto percebemos a atualidade dos bipolares, dos deprimidos, dos hiperativos e das pessoas com pânico. Ao invalidar certas formas de sofrer, aqueles cujas manifestações não se encaixam em sintomas não têm seu sofrimento reconhecido, argumenta o livro. Uma consequência prática é ficarem sem tratamento na saúde pública, uma vez que seguros de saúde, institutos de pesquisa e organizações acadêmico-empresariais usam o DSM-5 como norte para suas ações e tratamentos.
A depressão, diagnosticada banalmente no discurso popular e também por profissionais sem formação psicopatológica específica, como ginecologistas, tem sido usada para nomear as mais diferentes formas de mal-estar no mundo atual - daí seu caráter assustadoramente epidêmico. O sofrimento por um luto que se estende tem chances de ser renomeado depressão. Uma expressão de dificuldade natural é ajustada a um sintoma e, assim, obtém reconhecimento social. Modificações corporais como as cirurgias de mudança de sexo ou a amputação de membros saudáveis, examinadas com profundidade no livro, são sancionadas conforme uma leitura patológica.
Há, porém, algumas expressões de sofrimento que permanecem à margem da caracterização como sintoma. Difícil não pensarmos na série Black Mirror, que trouxe leituras variadas do mal-estar em sua antologia ficcional. Cada episódio trazia a identificação mediante um futuro que assombrava por sua presentificação e demonstrava os descompassos com uma sociedade na qual o pertencimento é, paradoxalmente, exclusão.
Ainda sobre identificações, o tema ganha uma extensa apuração a partir de suas implicações com o narcisismo e com a construção de fenômenos sociais de violenta intolerância às diferenças, como o nazismo e outros regimes totalitários.
Em uma era de respostas prontas servidas a perguntas silenciadas, já que um conjunto de sintomas suprime a indagação particular sobre cada um deles, o estranhamento frente à generalização é um ato de inclusão. Uma vez não inseridos nos diagnósticos existentes, pode-se realmente dizer que não estamos sofrendo?
*Livro Patologias do Social: Arqueologias do Sofrimento Psíquico, Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior e Christian Dunker
Texto Revisado
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Psicóloga há mais de 25 anos, Fundadora do Grupo Sanare, Casa Azul e Solar dos Budas. Sua base teórica e vivencial reúne a filosofia oriental, neurociência e psicologia integrada. Oferece consultoria e atendimento psicoterápico clínico. E-mail: [email protected] | Mais artigos. Saiba mais sobre você! Descubra sobre Psicologia clicando aqui. |